Notas

Nove pontos para um programa de esquerda, sem alianças com Alckmin e a direita

Versão em espanhol: Nueve puntos para un programa de izquierda, sin alianzas con Alckmin y la derecha

O início do ano foi marcado, finalmente, pelo início do debate programático para as eleições. Através deste editorial, apresentamos nove eixos que se desdobram em propostas para o País, para um possível governo de esquerda, que tenham como parâmetros transformações estruturais com impulso anticapitalista.

A discussão sobre um programa não deve ser feita de forma estática, mas partindo do momento político no qual estamos, onde o principal desafio da esquerda e da classe trabalhadora é derrotar Bolsonaro em 2022, encerrando quatro anos de um presidente neofascista e negacionista.

A derrota do bolsonarismo, no entanto, não está garantida e por isso acreditamos que a esquerda deve estar unida em torno de uma só candidatura, a de Lula, nas eleições, como melhor forma de alcançar esse objetivo e também enfrentar alternativas lavajatistas. Mas a unidade para derrotar Bolsonaro não pode ocorrer sob qualquer custo. Consideramos que a linha de alianças com a direita e concessões ao programa neoliberal radical da burguesia, alentada por parte da direção do PT, prepara derrotas estratégicas para a esquerda. Esse perigo está representado sobretudo na proposta de que Geraldo Alckmin seja o vice de Lula. O tucano como vice representaria o compromisso com a grande burguesia de que nenhuma mudança estrutural seria feita no país. Ou seja, Alckmin vice significaria rendição estratégica em termos políticos e programáticos, além de representar o perigo da reedição de novos intentos golpistas no futuro. Lula, sim. Alckmin, não!

Ao contrário, um programa para o momento atual deve ter como eixo desmontar o legado iniciado pelo golpe e aprofundado pelo bolsonarismo. Desde 2016, vimos uma escalada de ataques à classe trabalhadora, à soberania do país e seu patrimônio e ao meio ambiente. Não se trata de revisar alguns pontos ou buscar acordos para mudanças ou ajustes neste legado. É preciso revogar integralmente as medidas principais do período, como a reforma trabalhista, a Lei do Teto de Gastos e a reforma da Previdência, entre tantas outras. Este é o primeiro desafio de um programa de esquerda.

Enfrentar esse legado não será fácil, e enfrentará a reação dos que deram o golpe. O andar de cima exigirá não apenas preservar o patamar de exploração e saque que conquistou, mas ampliar esta agenda. Um exemplo do que nos espera ocorreu com a sinalização de Lula e do PT de rever a reforma trabalhista, como está sendo proposta no Estado Espanhol, o que provocou a reação do andar de cima, com declarações e editoriais. Trata-se portanto do desafio de revogar este legado e enfrentar o retrocesso e as ideias do bolsonarismo, que não desaparecerá como força política após uma possível derrota eleitoral.

O programa, no entanto, deve ir além da revogação deste legado. Para mudar de verdade a vida do povo, é preciso apontar um novo modelo econômico, centrado nas necessidades das classes subalternas. A crise do capitalismo que acelera a destruição do planeta e amplia a exploração dos recursos naturais e suga a força de trabalho, com o aumento do desemprego, da uberização e da miséria, precisa ser contida. O modelo que faz a juventude negra pedalar 12 horas por dia para os aplicativos é o mesmo que devasta o meio ambiente, provocando fenômenos extremos cada vez mais recorrentes, como as chuvas que atingiram o Sul da Bahia e parte de Minas Gerais ou a seca que castigou o Rio Grande do Sul. É preciso romper com esse modelo econômico que permite que os interesses do mercado estejam acima do direito à vida e torna a fome cada vez mais natural.

Precisamos, portanto, de um programa que apaixone a militância, que aponte medidas anticapitalistas, ecossocialistas, a serviço das mulheres, do povo negro, dos LGBTQI+, da maioria do povo. Só desta forma, com coragem, e sem conciliação, poderemos avançar em mudanças reais no país, apoiadas na mobilização de nossa classe e da juventude. A seguir, apresentamos algumas propostas para o debate na esquerda e no PSOL, em defesa de um governo das organizações da classe trabalhadora, sem patrões.


1- Fim do legado do golpe!

O golpe de 2016, na forma de impeachment, expressou uma inversão desfavorável das relações de força entre as classes no país. As consequências foram devastadoras. Por isso, devemos defender a revogação do legado do golpe. A chave deve ser a valorização dos serviços públicos que dão concretude a muitos dos direitos inscritos na Constituição de 1988, como saúde, educação e previdência, entre outros. Nesse sentido, são prioritárias a revogação do Teto de Gastos, da contrarreforma trabalhista e da contrarreforma previdenciária. Ou seja, o questionamento da Lei de Responsabilidade Fiscal e a Desvinculação das Receitas da União (DRU). É necessário, em seu lugar, uma Lei de Responsabilidade Social! Privatizações também devem ser revogadas, como a da Eletrobras e de refinarias, assim como outras medidas, como a reforma do ensino médio.

2- Em defesa do SUS! Saúde pública, universal e gratuita!

Apesar do significativo avanço da vacinação, a pandemia de Covid-19 ainda não terminou. Novas ondas de contágio são possíveis, e é preciso enfrentar a política genocida de Bolsonaro, que já levou mais de 600 mil vidas. A produção de vacinas em território nacional precisa ser acelerada, com a ampliação do investimento em ciência e tecnologia para garantir a internalização da cadeia de produção e para fomentar o desenvolvimento de novas vacinas. No plano internacional, é preciso buscar uma articulação dos países dependentes para atacar as relações de propriedade, atuando pela quebra de patentes.

Acima de tudo, é necessário defender o SUS, principal responsável por salvar vidas durante a pandemia, enfrentando a política de desmonte e privatização na saúde básica e as mudanças na política de saúde mental, que favorecem o avanço de grupos de saúde privada e retrocessos.

3- Direito ao trabalho! Valorização do salário mínimo!

Nada é mais importante que a luta contra a desigualdade social. Dezenas de milhões de pessoas estão desempregadas ou presas a trabalhos extremamente precários, com longas jornadas, remuneração baixa ou incerta e sem direitos. Essa realidade é evidenciada pela situação dos trabalhadores de plataformas (Uber, Ifood, Rappi, etc), que já compõem um dos maiores contingentes do proletariado, e não têm sequer vínculo trabalhista reconhecido. A consequência mais dramática é o mergulho de multidões de famílias em situação de pobreza e fome. Nesse cenário, Bolsonaro ainda insiste em uma falsa oposição entre empregos e direitos que só serve aos empresários.

Nossa saída para essa crise passa por gerar empregos com amplos direitos, por meio da adoção de um plano de obras públicas sociais – construção de creches, hospitais, escolas, saneamento básico, etc. O salário mínimo deve ser valorizado, com a meta de dobrar seu poder de compra, e tendo como objetivo estratégico chegar ao patamar de referência do DIEESE. A inflação precisa ser combatida, começando pelo fim da atual política de preços da Petrobrás, a PPI. Defendemos, ainda, a criação de um programa de renda mínima equivalente a um salário mínimo; a regulamentação do trabalho por aplicativos, reconhecendo o vínculo empregatício e garantindo direitos; o combate à repressão aos trabalhadores informais; um programa de empregabilidade para a juventude negra; e o desenvolvimento de programas para informais e MEIs.

4- Por uma nova relação com o meio ambiente! Em defesa da Amazônia, dos povos e territórios indígenas!

A devastação ambiental é obra do capitalismo em escala planetária, mas seus impactos não são sentidos da mesma maneira por todos. Países dependentes, como o Brasil, têm mais dificuldades para lidar com eventos climáticos extremos, e a parcela da população negra e pobre é a mais vulnerável, no que conhecemos como racismo ambiental.

O Brasil precisa se colocar na linha de frente das articulações internacionais para estruturar uma nova relação com o meio ambiente, que previna o aparecimento de novas cepas da Covid-19 e de novas pandemias e garanta as condições de perpetuação da vida, alterando a matriz energética, combatendo a devastação ambiental e enfrentando a crise climática. Tal transformação não será obtida por meio de soluções de mercado, que perpetuam a lógica capitalista, como os chamados créditos de carbono, mas pelo enfrentamento aos principais agentes poluidores em nível internacional e nacional. Nesse sentido, no Brasil, é fundamental exercer uma dura fiscalização sobre os setores que dirigem o desmatamento, como mineração, agropecuária e a extração de madeira, com punições que impulsionem a restauração das florestas com espécies nativas. A produção agropecuária deve ser regulada de modo a potencializar o uso de técnicas agroecológicas e combater os agrotóxicos. A FUNAI precisa ser fortalecida como um ponto de apoio ao processo de demarcação de terras e respeito às vidas indígenas, ribeirinhas e camponesas, duramente atacadas no governo Bolsonaro.

Petrobras deve desempenhar papel decisivo no processo de transição da matriz energética do país, sendo democraticamente gerida e investindo em energias renováveis. E as empresas de água e esgotos devem ser remunicipalizadas, para reduzir o valor das tarifas e garantir o direito à água.

5 – Os ricos têm de pagar pela crise!

Sob o capitalismo, toda a estrutura econômica funciona para garantir os lucros de poucos ao custo da pobreza e miséria de muitos. Essa lógica precisa ser invertida, colocando em primeiro plano a defesa dos interesses da maioria trabalhadora. Para que o Estado passe a atuar segundo uma responsabilidade social de garantir serviços públicos de qualidade, é preciso enfrentar a chamada “responsabilidade fiscal” que beneficia os grandes credores da dívida pública.

O primeiro passo para isso é suspender o pagamento aos grandes credores dessa dívida e realizar uma completa auditoria. Indo além, as empresas estatais precisam ser 100% públicas e os serviços públicos devem ser financiados, principalmente, pelos mais ricos, reduzindo o peso da tributação sobre a classe trabalhadora. Quem ganha mais precisa pagar mais. Por isso, defendemos uma reforma tributária com a diminuição de impostos para a classe trabalhadora e os mais pobres, e aumento da carga tributária para os mais ricos, por meio da redução da taxação sobre o consumo e ampliação da taxação sobre o patrimônio, com destaque para a taxação das grandes fortunas e dos lucros das multinacionais.

O mercado financeiro não deve permanecer intocável. Os grandes bancos privados devem ser estatizados e os pequenos negócios das cidades e a pequena produção agrícola no campo precisam ter financiamento público a taxas de juros reduzidas, sendo as verbas atreladas à utilidade social dos negócios e à preservação do meio ambiente.

6- Fim da guerra às drogas, desmilitarização das PMs, reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres

Combater o racismo estrutural, o machismo, a LGBTQIfobia e o capacitismo. Em suas muitas dimensões (econômica, sanitária, ambiental e política), a crise capitalista atinge de maneira desigual os distintas camadas da população, sendo os principais afetados aqueles mais oprimidos, como mulheres, negros/as e população LGBTQIA+. Essas camadas pobres ocupam as posições mais subalternas no mercado de trabalho – sendo, portanto, mais expostas à Covid-19 – e são alvos das mais variadas formas de violência, como a doméstica, de crimes de ódio e do extermínio da juventude negra, por meio da política de guerra às drogas. Defendemos uma política de defesa da vida e das condições de autoafirmação dos oprimidos. Somos favoráveis ao fim imediato da guerra às “drogas”, à revogação da Lei de Drogas de 2006, e à descriminalização das drogas ilícitas. As PMs precisam ser desmilitarizadas e o encarceramento em massa da juventude negra deve ser revertido. As políticas de cotas raciais, sociais e para PCDs devem ser reforçadas e aprofundadas. A laicidade do Estado deve ser preservada, e os currículos escolares devem incorporar a fundo o ensino das culturas e temáticas afrobrasileiras e indígenas. Defendemos, ainda, a legalização do aborto e o avanço nas políticas de acolhimento e apoio às pessoas vítimas de violência. No âmbito do mercado de trabalho, é indispensável reforçar o combate a todas as formas de discriminação na contratação e na remuneração. Outro ponto fundamental é a socialização crescente do trabalho doméstico, por meio da abertura de lavanderias e restaurantes populares, reduzindo o peso das jornadas duplas e triplas que recaem sobre as mulheres.

7- Reformas urbana e agrária

Nas cidades e no campo impera a organização do espaço segundo o princípio intocável da propriedade privada. Decorrem daí diversos elementos da crise social (milhares de famílias sem-teto e sem-terra, por exemplo) e da emergência ambiental (uso de agrotóxicos, ênfase no transporte individual poluente, dentre outros).

Inversamente, nosso programa deve partir da defesa dos princípios da moradia digna e da segurança alimentar para todos, priorizando formas coletivas de organização da vida e do espaço, que articulem produção agroecológica, transporte público de massa e não poluente e efetivação do uso social de toda propriedade. Nesse sentido, é urgente avançar com as políticas de aluguel social e desapropriação dos imóveis abandonados e com dívidas com o Estado, bem como instituir um IPTU progressivo, formando um plano nacional de moradia.

A reforma agrária precisa ser retomada, com a desapropriação dos latifúndios e fomento à produção agroecológica de alimentos saudáveis e baratos para a população, garantindo, também as terras das comunidades quilombolas e ribeirinhas. No campo, é preciso ampliar o incentivo à agricultura familiar e aos pequenos produtores cooperativados, em paralelo ao fomento às hortas urbanas.

8- Poder popular

A democracia não pode continuar restrita a votar em cada eleição. O peso do dinheiro não pode continuar desequilibrando a balança em favor dos ricos nas eleições e determinando as ações do governo. A democracia precisa ser permanente, direta e ampla. Um governo de esquerda deve rejeitar as alianças com a burguesia, e construir sua força pela mobilização e organização da maioria trabalhadora do povo e da juventude. A voz dessa maioria precisa ser constantemente ouvida nas principais decisões, por meio de plebiscitos, referendos e instâncias permanentes de deliberação de políticas públicas pelos movimentos sociais. Além disso, é preciso democratizar verdadeiramente o sistema político e as instituições que o sustentam. A mídia precisa ser efetivamente regulada, combatendo o poder monopolista dos grandes conglomerados empresariais, e também o poder das plataformas de internet e a disseminação de fake news. As leis antiterrorismo e de segurança nacional devem ser imediatamente revogadas. Defendemos, ainda, a responsabilização dos militares que cometeram crimes na ditadura e uma reforma geral das Forças Armadas, com a mudança do seu comando, estrutura e doutrina, colocando-as a serviço da soberania nacional e dos interesses da maioria trabalhadora do povo.

9- Anti-imperialismo e internacionalismo

Não é possível pensar em qualquer tipo de mudança estrutural sem romper com a dominação econômica e política exercida pelas grandes potências imperialistas, em especial, os EUA. Devemos estar alertas para garantir a total soberania do País – econômica, política e militar –, com atenção para instalações como a base de Alcântara. Entretanto, na medida em que essa tarefa não pode ser realizada isoladamente, é preciso, também, ter uma política externa ativamente independente e internacionalista, privilegiando relações econômicas e políticas com governos independentes, como Cuba e Venezuela, e o mundo periférico. O comércio exterior deve ser controlado pelo Estado, e gerido de acordo com os interesses da classe trabalhadora. A solidariedade em relação às lutas anti-imperialistas deve ser um horizonte fundamental.

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