Notas

MEC anuncia projeto Future-se, que trata o conhecimento como mercadoria

O projeto Future-se foi anunciado na manhã desta quarta-feira, 17, em um evento à portas fechadas na sede do INEP, em Brasília. Apresentado por um coaching, o objetivo do projeto é alterar a legislação para permitir que se amplie ao máximo o financiamento da pesquisa na universidade pelo mercado. O MEC aposta em um fundo nacional, que será usado para desenvolvimento de startups, incubadoras e captação de recursos privados. Cada departamento, instituto ou universidade seria convocado a sair em campo, oferecendo sua pesquisa e buscando financiamento das empresas.

A apresentação foi digna do vídeo com o guarda-chuva do ministro e de palestras motivacionais de empresas. A equipe que preparou o projeto anunciou que baseou-se nas ideias do economista Milton Friedman, fundador da Escola de Chicago, não por coincidência a mesma escola que inspirou a proposta de reforma da Previdência. Friedman foi citado, em especial pelo conceito de “capital humano”, deixando claro a mudança de lógica proposta, a partir da qual professores, alunos e técnicos seriam tratados como mercadoria, valendo em função do que produzirem ao mercado.

O modelo de fundo e da relação que se pretende é referenciado na operação de compra de royalties futuros como no futebol, com jogadores. O apresentador chegou a brincar. “Ô investidor, vai investir no Neymar? Investe aqui, na educação”. Como se a produção científica pudesse ser comparada com um espetáculo.

Assista à live com Raquel Dias e Eblin Farage, do Andes-SN, sobre o projeto

Sufocamento

O projeto foi meticulosamente desenvolvido como parte da política de cortes nos investimentos das universidades públicas. A ideia do governo é não dar nenhum passo atrás nos cortes e, como isso irá afetar o funcionamento das universidades (na verdade, já está obrigando algumas a paralisar atividades), a “saída” oferecida às instituições é estender o pires ao mercado.

O projeto tem compromisso zero com o conhecimento. O que não visar ou permitir lucro, a pesquisa que não for uma mercadoria, não terá investimento.

No pacote, a total submissão da pesquisa e da ciência aos interesses privados. As empresas só financiarão as áreas e as pesquisas de seus interesses e as universidades se transformarão em mero apêndice intelectual de suas demandas. É o fim da autonomia da pesquisa, em especial das pesquisas nas áreas sociais – que não raramente se chocam os interesses lucrativos – ou pesquisas científicas que não tenham aplicação imediata. A pesquisa sobre a Teoria da Relatividade, por exemplo, não receberia recursos.

Também é um duro ataque às pesquisas de cunho social e à Área de Humanas, por exemplo, e o fim de um aspecto que compõe o tripé da universidade pública, que é a extensão. E aprofundará a desigualdade de recursos entre as universidades e centros de pesquisa dos grandes centros e o Sul-Sudeste, em relação ao interior e regiões como o Norte e o Nordeste.

Muitos podem pensar: o que isso tem de mais? Muita coisa. Os interesses das grandes empresas não são idênticos aos interesses coletivos. O seu interesse é o lucro. E o interesse de uma universidade deve ser o da ciência, o do conhecimento, que inclusive pode e deve se chocar com os interesses privados todas as vezes que eles forem contrários aos coletivos.

“O professor vai poder ficar rico”

O programa, na prática, irá acabar com a carreira docente. O mestre de cerimônias do evento chegou ao cúmulo de anunciar que o professor “vai poder ficar rico”, lucrando com as suas pesquisas, vendendo patentes e através de convênios e parcerias com empresas, através das quais poderá receber financiamentos, incentivos e jetons que superam e muito seu salário. Citou como exemplo a Coppe-UFRJ, defendendo que as patentes de pesquisas com o pré-sal, por exemplo, pudessem ser de professores. “Temos que acabar com os preconceitos”, afirmou, como se um chavão pudesse encerrar o debate.

O future-se pode significar na prática o fim da carreira docente, com salários-base iguais, e levaria a categoria dos docentes, e provavelmente também a dos técnicos-administrativos, a uma fragmentação ainda maior e a um cenário de disputas e de divisões, perdendo o que resta do espírito de coletividade.

“O estudante tem que se libertar”

Por outro lado, o projeto estimula uma luta ideológica, em sintonia com o projeto de extrema direita do governo. Pretende conquistar milhares de estudantes para uma lógica individualista, baseada na busca do enriquecimento, através de conceitos como empreendorismo. Com chavões, como “o estudante tem que se libertar”, o representante do MEC afirmou que o estudante ao se formar, não tem que “pensar em arrumar emprego, fazer concurso… ele é livre para empreender, montar uma empresa, enriquecer”.

Esse é o mesmo espírito que está por trás da retirada de direitos e que tem jogado milhões de trabalhadores nas mãos de empresas de aplicativos, na uberização. Essa é a lógica que o governo Bolsonaro tenta impôr nas universidades, principal foco de resistência às suas medidas. O próprio ministro admite que, das empresas e startups que são abertas, 70% vão à falência. Mas considera que “faz parte”.

Para entrar na universidade, também vai ser mais difícil, em especial para as camadas mais pobres e oprimidas da classe trabalhadora. Os investimentos empresariais terão muito mais peso, serão fortemente direcionados e a concorrência para o acesso ao ensino e às oportunidades vai cobrar seu preço: os que têm mais condições ganharão a corrida.

Ao mesmo tempo, a política de cotas raciais e também as políticas que garantem maior presença da comunidade LGBTI nas universidades estão sob ataque, como pudemos ver nesta semana, com um cancelamento de um edital para estudantes trans.

O Future-se, ou privatize-se, como já vem sendo chamado, tampouco afasta a ameaça de cobrança de mensalidades, uma medida de grande impacto, que provocaria novo tsunami na educação. Ao contrário, a ameaça permanece, e a cobrança de mensalidades ou taxas será proposta como forma de financiamento do ensino.

É preciso uma resposta urgente dos servidores, docentes e estudantes das universidades

O segundo semestre exigirá dos estudantes, professores e técnicos uma grande resposta, com foi o tsunami de maio. Vai exigir mobilização e resistência para impedir o desmonte completo da educação superior no país e também resistir à aprovação da reforma da Previdência em segunda votação e no Senado.

O MEC fala em diálogo, mas a repressão nesta terça, 17, em Brasília, e as portas fechadas no evento indicam que tipo de diálogo o ministro oferece.

Pelo calendário anunciado, o projeto de lei deve seguir para o Congresso no final de Agosto, após consulta pública. Mais do que nunca, é hora de preparar a resistência, em unidade, construindo um calendário de luta, que já tem a paralisação nacional do dia 13 de agosto,  aprovada no Congresso da UNE, abraçada pelas universidades, institutos federais e pela educação básica. É hora de ir à rua. Educação e Ciência não são mercadorias.

* Colaborou Juary Chagas, professor de Serviço Social da UFPE

Assista à live com Raquel Dias e Eblin Farage, do Andes-SN, sobre o projeto

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