Isabel KepplerNotas

Quem está doente é o sistema social: notas sobre saúde mental e militância

Isabel Keppler, de Natal, RN
*psicóloga e militante da Liberdade, Socialismo e Revolução (LSR/CIT-PSOL)

Saúde e militância tem sido um tema recorrente. Aqui apresento alguns elementos, frutos de leituras e debates coletivos com ideias que há tempos venho sistematizando com o intuito de apresentar algo mais elaborado, mas a cada texto novo que sai, sinto necessidade de expor tais reflexões. Dessa forma, adianto aqui ser apenas um esboço e início de conversa.

Primeira coisa é talvez uma reflexão sobre o que é ser militante. É preocupante que seja visto como um estranho, porque queremos que todos e todas se envolvam na luta coletiva para mudar o sistema, e por isso é importante desmistificar o “ser militante”.

Somos pessoas de carne e osso que vivemos, temos conta pra pagar, amamos, trabalhamos, nos divertimos, sofremos e entendemos que é possível e necessário construir outra sociedade em que a exploração não seja condicionante.

Entendemos que saídas individuais são casuais e/ou insuficientes. O empenho e o esforço individuais não serão capazes de resolver nossos problemas. É preciso sair dessa juntos.

A militância ajuda a identificar nossos problemas e organiza as saídas pra eles. Entender como a sociedade funciona na raiz, refletir como superar suas contradições, e organizar a superação dentro da força que temos (quantos somos, correlação etc.) é uma dedicação a mais, e despende tempo, energia, dedicação, mas parte da compreensão de que a luta política é uma necessidade.

O nosso maior problema é o sistema, e não a militância

Então, considero importante partir da compreensão de que nosso maior problema é o sistema, e não a militância. E na medida em que há um acirramento, com maiores ataques dos patrões e governos, isso implica não apenas objetivamente, mas psicologicamente em nós. Somos nós e os nossos que ficam desempregados, que são vítimas da violência crescente, que morrem de frio, de fome, que veem limites para o futuro. Isso nos causa mais ansiedade, mais angústia, nos deprime.

Nesse sentido, resistir e buscar saídas coletivas é produzir saúde, e não doenças. É difícil, mas isso talvez seja o remédio mais efetivo, a maior entrega que fazemos, maior prova de amor e de vontade de viver. Rejeitamos ser explorados e nos negamos a aceitar as coisas como estão. É ainda uma vacina, porque temos também conquistas imediatas quando lutamos.

O que nos propomos a fazer não é, ou não pode ser, um trabalho voluntário. Não pode ser visto como um martírio, tampouco uma recreação em que encontramos pessoas legais e organizamos manifestações quase como catarses para aliviar nossa raiva contra as injustiças.

Queremos construir um projeto de transformação e isso exige sacrifício, mas esse sacrifício só vale se fizer sentido, se entendermos como está intrínseco a melhorar nossas vidas, e condições de vida. Dizer que “a militância cobra muito” é uma alegação abstrata.

Uma metáfora: suponhamos que temos uma montanha e precisamos chegar ao topo. Para isso, podemos construir um elevador ou uma escada, ou então escalar na raça. É difícil e não temos uma receita pronta, vamos testando o melhor método para chegar lá. Mas alcançar o topo é preciso, e não adianta culpar a escada, o elevador, o caminho, ou quem está tentando construir. É preciso junto identificar os problemas e achar a solução. Quando responsabilizamos a militância pelo nosso adoecimento mental, estamos responsabilizando o instrumento (ou o caminho). Além de ser infrutífero é também simplista, porque o topo da montanha continuará lá, a ser alcançado.

É preocupante que alguns textos, ou mesmo discussões em bares tenham esse tom, na minha visão, equivocado. Se erramos na avaliação, erramos na conclusão. Se alegamos que a militância é que esmaga a vida pessoal e a saúde mental dos militantes, a conclusão é apostar em cuidar de sua vida individual, ou considerar-se um mártir que as pessoas vão admirar, mas de forma alguma vão fazer igual.

Por isso, a primeira coisa que devemos enfatizar é: o que nos esmaga e nos engole, o que mata nosso tempo de lazer, nosso tempo de amar, nossa saúde e nosso riso, é o sistema capitalista, que promove desigualdade social na medida em que gira em torno do lucro e da concentração de riquezas de poucos. É um mundo saudável para os 1%.

A Reforma da Previdência é o exemplo mais atual disso. O rombo é uma falácia. Enquanto empresas devem milhões para o Estado, a proposta é aumentar a idade para se aposentar mesmo que em alguns estados ultrapasse a expectativa de vida da população. É uma reforma para privilégio de uma minoria em detrimento da maioria.

Nós defendemos um mundo para os milhões, e não mais para os milionários. E lutar por isso é lutar por nossa saúde, por nossas vidas. É produzir saúde, e não doença.

Quando a militância provoca também sofrimento

A militância pode, de fato, ser um elemento que contribui pro adoecimento. Para isso, é preciso que a esquerda formule sobre o tema. Em 2011, fiz uma monografia sobre o tema, e aqui coloco alguns pontos que desde então tenho elaborado a partir de leituras, vivências e debates coletivos sobre o assunto:

1. O desafio de construir o mundo de amanhã com homens e mulheres do mundo hoje: somos sujeitos desse mundo, de carne e osso. Temos contradições, temos nossos problemas. O fato de entendermos que precisamos mudar o sistema não nos torna, de imediato, sujeitos alheios às contradições desse mundo. Temos que nos cuidar para não reproduzir ou reproduzir o mínimo possível as piores características e personalidades que esse modo de produção capitalista produz ou alimenta: individualismo, ego, vaidade, competitividade, e claro, a opressão. Tais características nos divide, nos destrói e enfraquece o nosso projeto. Precisamos ao maximo criar entre nós espaços fraternos, solidários, colaborativos, livres de opressão, com respeito às diferenças, não eliminando nossas divergências de forma autoritária, mas crescendo com elas. Temos que ter o esforço coletivo de sermos o mais próximo possível de sujeitos de uma nova sociedade e nova sociabilidade. Isso não é fácil e não tem receita pronta, mas é um princípio que deve estar presente naqueles que se dispõem à militância.

2. Dissociação de vida e militância
2.1. A relação entre indivíduo e sociedade é produto desse modo de produção. Defendemos uma sociedade mais coletivista, e menos individualista. Mas hoje sofremos pressão de uma dicotomia vida pessoal x coletivo ou vida pessoal x militância. A noção de “eu e o mundo”, “eu e a sociedade”, de como o indivíduo se relaciona enquanto ser social, é produto também do modo de produção.

Isso deve ser colocado em questão quando nos dispomos a construir um projeto coletivo. Não devemos priorizar um em detrimento de outro. Nosso esforço e dedicação em transformar o mundo devem estar alinhados com nossa vida cotidiana, e caminhar lado a lado. É um desafio enfraquecer o individualismo e fortalecer a ideia de individualidade. Abrir mão de nossos egos, vaidades, e das ilusões em saídas individuais em que tentamos nos destacar sem nos preocupar com aqueles ao nosso redor. Em contrapartida, cultivar as individualidades. Somos seres sociais, com características particulares e habilidades que podem contribuir para o coletivo. Temos também nossos desejos que dão sentido a nossa vida e precisamos conciliar a nossa luta coletiva com nossos momentos para amar, para ler o que nos interessa, para aprender novas habilidades, para conversar com quem nos identificamos. Dar tempo para isso é inclusive importante para nos deixar mais fortes.

2.2. Alienação na militância. Como disse antes, militância exige sacrifício e com isso temos tarefas. Mas na medida em que as tarefas se limitam a tarefas, dissociando-se de sentido e de proposta, torna-se adoecedor. O “reunísmo”, em que nos perdemos reunião seguida de reunião, que encaminha outra reunião; o distanciamento com gente real, com vidas reais, dentro dos bairros, das escolas, dos locais de trabalho para limitar-se em debates internos na vanguarda da esquerda; elementos como esses produzem desgaste.

O praticismo, pragmatismo, com pouca formação teórica que nos ajuda a entender onde nos localizamos diante da História (essa mesma, com H maiúsculo) nos faz ser engolidos pela pequena política de pensar eleição após eleição, ou manifestação após manifestação. Considerar a militância apenas como uma tarefa provoca perda de sentido. No limite, não fazemos isso por voluntarismo. Enquanto mulher, minha militância está atrelada com me defender e em como sobreviver a esse mundo machista, por exemplo. Mas também enquanto sujeito histórico, conhecer experiências anteriores, como a vivida na Revolução Russa ou na ditadura no Brasil, ajudam e muito a dimensionar nossas lutas e nossas tarefas.

3. Por fim, não é excesso de partido/organização política que adoece os militantes, e sim a falta.
Frase polêmica. Explico: uma organização politica deve ser como um corpo. Devemos atuar juntos de acordo com as condições de cada parte desse corpo, de cada célula. Uma organização deve se construir partindo da realidade concreta da conjuntura em geral, mas também partindo da realidade concreta interna.

Isso só é possível se todas as partes desse corpo estiverem inseridas de forma ativa, apresentando sua disposição e disponibilidade. É preciso ter uma mediação entre o que é preciso fazer e o que a organização tem condições de fazer.

É preciso que as instâncias encaminhem metas e tarefas, porque o que nos propomos a fazer é complexo e precisa de planos. Essas metas e tarefas devem ser elaboradas conjuntamente, e ainda que exijam esforço e sacrifício, precisam ser viáveis de se fazer com o número de pessoas que têm. Caso contrário, ou adoecem atingindo, ou se frustram jamais atingindo.

É recorrente, ao compreenderem a militância como adoecedora, apontarem “a organização/o partido” como insensíveis para com seus militantes e que exigem demais. Ora, mas o que é “a organização/o partido”? Não é um ente abstrato. É concreto, composto por seres de carne e osso desse mundo. Se está pesado para um, como divide e reorganiza? A cobrança não vem – ou não pode vir – imposta de uma burocracia, reproduzindo uma lógica empresarial em que um chefe determina as tarefas e os funcionários obedecem, mesmo que se destruam, para cumprir. Tampouco a queixa deve ser feita dessa forma.

Primeiro, como já disse antes, a realidade nos exige e muito! Quando a coisa aperta, as tarefas aumentam e os esforços também. Agora, por exemplo, com tais reformas antipopulares sendo encaminhadas e com uma greve geral por construir, não é (ou não pode ser) um Comitê Central ou um dirigente que vai pressionar o militante a se engajar mais, mas a própria situação objetiva!

Em segundo, é compreensível que existam momentos difíceis na vida individual que exijam até mesmo afastamento das atividades, mas isso deve ser discutido com os demais membros, na medida do possível. Isso porque a organização precisa se reorganizar quando uma pessoa se afasta, como também quem se afasta não deve ser “abandonado” por seus camaradas.

Assim, para que seja possível construir um projeto coletivo sensível às necessidades para atingir os objetivos e que considere as condições objetivas para isso, é preciso uma organização interna sólida e com democracia interna, onde os temas possam ser colocados e debatidos politicamente.

Não é possível um assunto como esse ter conclusão. Esses são apenas alguns apontamentos. Está colocado o desafio da esquerda organizar mais debates e formular mais sobre o tema da saúde, e não só para os militantes como pra população em geral. Temos uma concepção de saúde individualizante, que trata o indivíduo, na maior parte das vezes medicalizando, quando sabemos que o nosso sistema também está doente. Podemos e devemos nos apropriar do tema da saúde e construir nossas propostas. Que possamos avançar mais nesse debate!

Foto: Yellow Pink (1929) | Kandinsky

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