Michael Löwy
Publicado na revista da Resistência, em março de 2020.
A ameaça crescente de colapso do equilíbrio ecológico aponta para um cenário catastrófico – o aquecimento global – que coloca em perigo a própria sobrevivência da espécie humana (1).
O ecossocialismo é uma tentativa de fornecer uma alternativa civilizacional radical, enraizada nos argumentos básicos do movimento ecologista e na crítica marxista da economia política. Ele contrapõe ao progresso destrutivo capitalista (Marx) uma política econômica fundada em critérios não-monetários e extra-econômicos: as necessidades sociais e o equilíbrio ecológico. Esta síntese dialética é, ao mesmo tempo, uma crítica à “ecologia de mercado”, que não se confronta com o sistema capitalista, e ao “produtivismo socialista”, que ignora a questão dos limites naturais.
Os marxistas poderiam se inspirar nos comentários de Marx sobre a Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparato de estado capitalista e colocá-lo para funcionar a seu serviço. Eles têm que “quebrá-lo” e substituí-lo por uma forma radicalmente diferente, democrática e não-estatizante de poder político.
Isso pode significar, para certos ramos da produção, descontinuá-los: por exemplo, usinas nucleares, certos métodos de pesca industrial em massa responsáveis pelo extermínio de várias espécies nos oceanos, o desmatamento destrutivo das florestas tropicais, etc. Em todos os casos, as forças produtivas, e não somente as relações de produção, têm que ser profundamente modificadas – em primeiro lugar, através de uma revolução no sistema energético, com a substituição da matriz essencialmente fóssil responsável pela poluição e envenenamento do ambiente, por outras renováveis: água, vento, sol. É claro que muitas descobertas científicas e tecnológicas da modernidade são preciosas, mas o sistema produtivo como um todo deve ser transformado, e isso só pode ser feito por métodos ecossocialistas, isto é, através de um planejamento democrático da economia, que leve em conta a preservação do equilíbrio ecológico.
A questão da energia é decisiva para esse processo de mudança civilizacional. Matrizes fósseis (petróleo, carvão) são responsáveis por grande parte da poluição planetária, como também pelas desastrosas mudanças climáticas; a energia nuclear é uma falsa alternativa, não somente pelo perigo de novas Chernobyls, mas também porque ninguém sabe o que fazer com as milhares de toneladas de lixo radioativo – tóxico por centenas, em alguns casos milhares de anos – e as gigantescas e obsoletas usinas contaminadas. A energia solar, que nunca levantou muito interesse nas sociedades capitalistas por não ser “lucrativa” nem “competitiva”, deveria se tornar objeto de pesquisa e desenvolvimento intensivos, e cumprir um papel fundamental na construção de uma matriz energética alternativa.
A própria sociedade, e não mais uma pequena oligarquia de donos de propriedades nem uma elite de tecnoburocratas, será capaz de escolher, democraticamente, quais linhas produtivas deverão ser privilegiadas, e o quanto de recursos que será investido em educação, saúde ou cultura. Os próprios preços das mercadorias não serão entregues às “leis da oferta e da demanda”, mas, até certo ponto, determinados segundo opções sociais e políticas, assim como critérios ecológicos, levando à taxação de certos produtos, e subsidiando o preço de outros.
Longe de ser “despótico”, o planejamento é o exercício, do conjunto da sociedade, de sua liberdade: liberdade de decisão, e libertação das alienadas e reificadas “leis econômicas” do sistema capitalista, que determinam a vida e a morte dos indivíduos, e os encarceram em uma “gaiola de ferro” (Max Weber). Planejamento e a redução do tempo de trabalho são os dois passos decisivos da humanidade rumo ao que Marx chamou de “o reino da liberdade”. Um substancial aumento do tempo livre é, na verdade, uma condição para a participação democrática do povo trabalhador na discussão democrática e na administração da economia e da sociedade.
Em uma produção racionalmente organizada, o plano preocupa-se com as principais opções econômicas, e não com a administração de pequenos restaurantes, armazéns e padarias, pequenas lojas, empreendimentos artesanais ou serviços.
Qual a garantia de que o povo vá fazer as escolhas ecológicas corretas, mesmo que tenha de abrir mão de alguns de seus hábitos de consumo? Não existe essa “garantia” senão a aposta na racionalidade das decisões democráticas, uma vez que o poder do fetichismo no consumo tenha sido quebrado. Obviamente, erros serão cometidos nas escolhas populares, mas quem acredita que os especialistas também não cometem seus erros? Não se pode imaginar o estabelecimento dessa nova sociedade, sem que a maioria da população tenha adquirido, pelas suas lutas, sua auto-educação, e sua experiência social, um alto nível de consciência socialista/ecológica, o que torna razoável supor que erros sejam corrigidos. Em todo caso, as alternativas propostas – o mercado cego, ou uma ditadura ecológica de “especialistas” – não serão mais perigosas que o processo democrático, com todas as suas contradições?
A passagem do “progresso destrutivo” capitalista para o ecossocialismo é um processo histórico, uma transformação revolucionária permanente da sociedade, cultura e mentalidades. Essa transição levará não somente a um novo modo de produção e a uma sociedade igualitária e democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização ecossocialista, além do reinado do dinheiro, além dos hábitos de consumo artificialmente produzidos pela publicidade, e além da produção ilimitada de mercadorias inúteis e/ou que causam danos ao meio-ambiente. É importante ressaltar que tal processo não pode começar sem uma transformação revolucionária das estruturas sociais e políticas, e o apoio ativo da vasta maioria da população ao programa ecossocialista.
Deve-se perseguir o desenvolvimento, ou escolher o “crescimento negativo”? Acho que essas duas opções compartilham uma concepção puramente quantitativa de “crescimento” positivo ou negativo, ou de desenvolvimento das forças produtivas. Existe uma terceira posição, que me parece mais apropriada: uma transformação qualitativa do desenvolvimento. Isso significa colocar um fim ao monstruoso desperdício de recursos pelo capitalismo, baseado na produção, em larga escala, de produtos desnecessários e nocivos: a indústria de armamentos é um bom exemplo, mas grande parte dos “bens” produzidos no capitalismo – com sua obsolescência programada – não tem outra utilidade a não ser gerar lucro para as grandes corporações. A questão não é o “consumo excessivo” em abstrato, mas o atual tipo de consumo, baseado, como é, na apropriação conspícua, desperdício massivo, alienação mercantil, acumulação obsessiva de bens, e a aquisição compulsiva de pseudo-inovações impostas pela “moda”.
Obviamente, os países do Sul, onde essas necessidades estão longe de estarem satisfeitas, vão precisar de um nível muito maior de “desenvolvimento” – construindo ferrovias, hospitais, sistemas de esgoto e outras obras de infra-estrutura – do que os países industrialmente avançados. Mas não existe razão de por que isso não possa vir acompanhado de um sistema produtivo que seja ambientalmente amigável e baseado em matrizes energéticas renováveis. Esses países precisarão plantar grande quantidade de alimentos para alimentar suas populações famintas, mas isso pode ser mais bem alcançado – como os movimentos camponeses, organizados mundialmente pela Via Campesina, têm defendido há anos – com uma agricultura agro-ecológica baseada em unidades familiares, cooperativas ou fazendas coletivas, melhor do que os métodos destrutivos e anti-sociais do agronegócio industrializado, baseados no uso intensivo de pesticidas, agrotóxicos e transgênicos.
Ao invés do atual e monstruoso sistema de dívida, e a exploração capitalista dos recursos do Sul pelos países industrializados/capitalistas, deve haver um fluxo de ajuda técnica e econômica do Norte para o Sul, sem a necessidade – como alguns ecologistas ascéticos e puritanos parecem acreditar – de que as populações da Europa e da América do Norte “reduzam seu padrão de vida”: elas só vão se libertar do consumo obsessivo, induzido pelo sistema capitalista, de produtos desnecessários, que não correspondem a nenhuma real necessidade.
Como distinguir as necessidades autênticas das artificiais, falsas e transitórias? Estas últimas são induzidas pela manipulação mental, isto é, propaganda. A publicidade invadiu todas as esferas da vida humana nas sociedades capitalistas modernas. O critério para distinguir uma necessidade autêntica de uma artificial é sua persistência depois do fim da publicidade. É claro que, durante vários anos, velhos hábitos de consumo persistiriam, e ninguém tem o direito de dizer ao povo quais são as suas necessidades. A mudança nos padrões de consumo é um processo histórico, assim como um desafio educacional.
Vários bens, como o carro individual, trazem problemas mais complexos. Os automóveis privados são uma praga pública, matando e mutilando centenas de milhares de pessoas anualmente em escala mundial, poluindo o ar nas grandes cidades, com conseqüências horríveis para a saúde das crianças e dos idosos, e contribuição significativa para as mudanças climáticas. Porém, eles correspondem a uma necessidade real, transportando as pessoas para o trabalho, casa ou lazer. Experiências locais em algumas cidades européias, com administrações com preocupação ecológica, mostram ser possível – com a aprovação da maioria de suas populações – limitar progressivamente o percentual de automóveis individuais em circulação, em privilégio de ônibus e trens. Em um processo de transição para o ecossocialismo, onde o transporte público – de superfície ou metrô – seria amplamente estendido, e grátis, e onde pedestres e ciclistas teriam vias protegidas, o carro particular teria um papel muito menor do que na sociedade burguesa, onde ele se tornou um fetiche, um símbolo de prestígio, um signo de identidade.
O ecossocialismo é baseado em uma aposta, que já foi de Marx: o predomínio, em uma sociedade sem classes e liberta da alienação capitalista, do “ser” sobre o “ter”, isto é, do tempo livre para a realização pessoal de atividades culturais, esportivas, prazerosas, científicas, eróticas, artísticas e políticas, ao invés do desejo pela posse infinita de produtos.
Isso não significa que não surjam conflitos, particularmente durante o processo transicional, entre as exigências de proteção ambiental e as necessidades sociais, entre os imperativos ecológicos e a necessidade de desenvolver a infra-estrutura básica, particularmente nos países pobres, entre os hábitos de consumo populares e a falta de recursos. Uma sociedade sem classes não é uma sociedade sem contradições e conflitos! Eles são inevitáveis: essa será a tarefa do planejamento democrático, em uma perspectiva ecossocialista, liberta dos imperativos do capital e da necessidade do lucro, em resolvê-los através de uma discussão pluralista e aberta, visando a uma tomada de decisão pela própria sociedade. Tal democracia de base e participativa é o único caminho, não para evitar erros, mas para permitir a auto-correção, pela coletividade social.
Isso é uma Utopia? No seu sentido etimológico – “algo que existe em nenhum lugar” – certamente. Mas as utopias, isto é, imagens de uma sociedade diferente, não são uma característica necessária a qualquer movimento que pretende desafiar a ordem estabelecida?
Sonhar e lutar por uma nova sociedade, não significa que não se deva lutar por reformas concretas e urgentes. Sem nenhuma ilusão sobre um “capitalismo limpo”, deve-se tentar ganhar tempo, e impor aos poderes constituídos algumas mudanças elementares: o banimento dos HCFCs que estão destruindo a camada de ozônio, uma moratória geral para os organismos geneticamente modificados, uma drástica redução da emissão dos gases formadores do efeito estufa, o desenvolvimento do transporte público, a taxação dos carros poluentes, a substituição progressiva dos caminhões por trens, uma regulação severa sobre a indústria de pesca, assim como sobre o uso de pesticidas e agrotóxicos na produção agroindustrial. Estas, e outras questões semelhantes, estão no coração da agenda do movimento por Justiça Global e dos Fóruns Sociais Mundiais, que têm permitido, desde Seattle em 1999, a convergência dos movimentos sociais e ambientais em uma luta comum contra o sistema.
Essas bandeiras ecossociais urgentes podem levar ao um processo de radicalização, sob a condição de não se aceitar limitar alguma meta, conforme os interesses do “mercado [capitalista]” ou da “competitividade”. De acordo com a lógica do que os marxistas chamam de “um programa de transição”, cada pequena vitória, cada avanço parcial pode imediatamente levar a uma demanda superior, para uma meta mais radical. Essas lutas em torno de questões concretas são importantes, não somente porque vitórias parciais são bem-vindas, mas também porque elas contribuem para elevar a consciência ecológica e socialista, promovem atividade e auto-organização desde as bases: ambas são pré-condições decisivas e necessárias para uma radical, isto é, revolucionária transformação do mundo.
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(1) Para uma extraordinária análise da lógica destrutiva do capital, veja Joel Kovel, The Enemy of Nature. The End of Capitalism or the End of the World? N.York; Zed Books, 2002.
(2) John Bellamy Foster usa o conceito de “revolução ecológica”, mas ele argumenta que “uma revolução ecológica global digna do nome só pode ocorrer como parte de uma grande revolução social – e eu insistiria, socialista. Tal revolução (…) exigiria, como Marx enfatizou, que os produtores associados racionalmente regulassem a relação metabólica com a natureza. (…) Ela deve tirar sua inspiração de William Morris, um dos mais originais e ecológicos seguidores de Karl Marx, de Gandhi, e de outras figuras radicais, revolucionárias e materialistas incluindo o próprio Marx, voltando até Epicuro”. (“Organizing Ecological Revolution”, Monthly Review, 57.5, October 2005, pp. 9-10). Veja John Bellamy Foster, Marx’s Ecology. Materialism and Nature, New York, Monthly Review Press, 2000
(3) Veja John Bellamy Foster, A Ecologia de Marx. Materialismo e Natureza, Nova Iorque, Monthly Review Press, 2000
(4) F.Engels, Anti-Dühring, Paris, Ed. Sociales, 1950, p. 318.