Quando Vladimir Lênin chegava na Rússia, depois de doze anos de exílio, saindo do famoso trem que cruzou o continente europeu e desembarcou na Estação Finlândia, a situação política russa parecia estar se estabilizando.
Os chapéus agitados ao alto, o apito do trem e a fumaça da locomotiva, os gritos e barulhos efusivos de palmas marcavam a chegada do principal dirigente bolchevique.
As ruas de Petrogrado e das outras cidades russas já não viam a mesma vida que se observava meses antes. A Revolução de Fevereiro foi vitoriosa. O Governo Provisório estava recém formado e parecia em trégua com as massas revoltosas. Onde antes se via agitadores, pessoas abrindo faixas, e plenárias, agora se via vendedores de jornais, de bala, pessoas caminhando tranquilamente, outros acendendo seu cigarro sem pressa.
As palavras de Lênin e suas Teses de Abril pareciam ser um fio destoante. Algo sem sentido para aqueles dias que estavam aparentemente tranquilos. A voz firme, os movimentos grossos, exagerados e quase teatrais do dirigente bolchevique enquanto discursava, surgiam como um ponto fora da curva.
Este texto busca tratar de forma rápida e breve alguns acontecimentos que navegaram em Abril de 1917 após a chegada de Lênin em Petrogrado. Entender a Revolução não somente como o ato da tomada do poder em si, mas como todo o processo e desenrolar que ocorreu antes disto. Deste o crescimento do partido, sua reorientação política, a batalha para se tornar maioria, os erros infantis dos adversários e coincidências históricas que caso não tivessem ocorrido, o final poderia ser bastante diferente.
Por mais que alguns nomes sejam difíceis de pronunciar, ou desconhecidos e estranhos, não é difícil entender do que se tratam os meses que antecederam Outubro e vieram após fevereiro. Mesmo aqueles que não têm um conhecimento sobre os fatos narrados e ocorridos conseguem, de imediato, saber o que se trata e o que está em jogo durante estes meses, ou durante as 24 ou 48 horas que os fatos se desenrolam.
A festa do povo, como diria Lênin, ao definir uma revolução, passa por muitas fases, desde aquela em que o impossível acontece diante dos olhos, a solidariedade universal se torna regra, e a liberdade e a imaginação parecem ser livres, até aquele momento mágico, onde o Partido, as massas, e o programa revolucionário parecem ser um só.
O Partido se arma
A Conferência Nacional do Partido Bolchevique, exatamente uma semana após a chegada de Lênin na Estação Finlândia, agrupou o partido em diversos blocos sobre os principais temas da situação russa pós-fevereiro. Foram ao todo 149 delegados eleitos, por 79 mil membros do Partido, sendo 15 mil destes somente de Petrogrado. Os principais nomes alinhados a Lênin foram Zinoviev, Bukharin, e Stalin, que mudou rapidamente de opinião após a divulgação das Teses. Do outro Kamenev, Rikov e Noguin.
Estes últimos foram denominados por Lênin de velhos-bolcheviques, por se prenderem a teorias e análises desenvolvidas historicamente pelo Partido. Kamenev, por exemplo, defendia que as tarefas democrático-burguesas da revolução estavam inconclusas, e por isso era dever dos revolucionários lutar para garanti-las, e que os sovietes deveriam ser apenas instrumentos de pressão ao governo provisório, não instrumentos de duplo poder. Rikov, por sua vez, afirmava ainda que os soviets, muito menos os bolcheviques, tinham forças sociais suficientes para fazer uma revolução socialista.
Lênin, ao contrário de seus adversários, afirma que a revolução burguesa na Rússia havia se concluído, pois esta já conservava o Poder em suas mãos, apesar de haver tarefas democráticas burguesas que não foram completadas, como terra para os camponeses e o fim da guerra. Para Lênin, somente com os sovietes tomando o poder, estas tarefas inconclusas poderiam ser finalizadas, porém, isso poderia ser feito somente em uma transição para o socialismo. A burguesia não era mais aliada, e sim uma classe inimiga, e os trabalhadores poderiam contar apenas com suas forças e das demais classes populares, como os camponeses. Lênin acusa os velhos bolcheviques de ficarem presos em formas dogmáticas e em escritos antigos, sem a capacidade de analisar a realidade e sua dinamicidade.
No congresso, as teses defendidas por Lênin triunfam em seus pontos fundamentais. Na questão sobre a guerra, sua posição a defesa dos bolcheviques do fim da mesma é vitoriosa, tendo nenhum voto contrário, sete abstenções e o restante de votos a favor. No que tange a resolução para “iniciar um trabalho prolongado com o objetivo de transferir aos sovietes o poder do estado”, Lênin consegue 122 votos a favor, 3 contra e 8 abstenções. Na última resolução, que tratava da necessidade de empreender a via da revolução socialista, o quórum não foi atingindo, reunindo somente 71 dos 118 delegados necessários.
Nas resoluções referentes ao partido, as posições de Lênin foram vencidas. Ele foi o único a votar a favor de sua moção, para qual o partido deveria abandonar o nome social-democrata. A conferência votou também a constituição de uma comissão mista de bolcheviques e mencheviques para o estudo das condições de unificação, que haviam sido acordadas entre Stalin e Kamenev, pelo lado bolchevique e pelo menchevique Tsereteli.
Algumas semanas, no máximo cerca de dois meses, foram necessárias para que a totalidade do partido aceitasse as teses e o posicionamento político de Lênin. O desenvolvimento do movimento de massas, o acirramento da luta de classes e da situação revolucionária, assim como o crescimento dos sovietes, mostraram que as Teses de Abril não eram fruto de uma mente que havia enlouquecido no exílio, mas sim de uma fiel análise marxista da situação.
O Governo Provisório
Em fevereiro as massas foram as ruas. As manifestações massivas de trabalhadores que começaram com os protestos de mulheres operárias tomaram conta da Rússia. A história é conhecida. O Czar Nicolau II foi preso, e um governo provisório foi formado. O novo líder desse governo era o príncipe Georgy Lvoy, uma figura meramente decorativa, que representava o último vinculo do antigo regime com a nova situação russa. Seu gabinete ministerial estava formado por diversos liberais. Acovardados e amedrontados, eles temiam a força da classe trabalhadora que se levantara.
Entre os principais ministros podemos listar aqui o ministro do Exterior, um histórico líder dos cadetes, Pavel Milyukov. O ministro da Guerra, Aleksander Guckkov, presidente da Duma. E, em especial o ministro da Justiça, o socialista-revolucionário Alexander Karensky, o único ministro que veio das forças que representavam os trabalhadores. Seu partido era uma força colossal entre os camponeses. Detinha maioria absoluta na inserção na classe.
A principal discussão que se fazia na Rússia nos primeiros meses daquele ano era sobre a guerra. A permanência ou não do país no conflito. Porém, a derrubada do czar e o anúncio de algumas medidas por parte do Governo Provisório, tiraram de forma momentânea o tema da guerra da cena diária.
Mas o tempo passava, e a incapacidade do governo de tomar uma medida concreta sobre o tema do conflito deixava, ao passar do tempo, mais e mais setores populares insatisfeitos.
Os sovietes e a guerra
O processo revolucionário de fevereiro trouxe novamente a cena russa os chamados sovietes. Os conselhos de trabalhadores, soldados e camponeses, haviam aparecido no mundo pela primeira vez na revolução de 1905. Doze anos depois, os sovietes se espalharam por todo território russo, e foram instrumentos fundamentais para a derrubada do czar. Dessa vez, diferentemente de 1905, os partidos e as diversas frações da social-democracia russa viam os sovietes com bons olhos, buscavam atuar dentro deles e incentivá-los. Uma dualidade de poderes existia nas ruas, fábricas, e campos de todo o país. O Governo Provisório representava claramente os interesses dos capitalistas, dos latifundiários, e do que restava da antiga ordem. Por outro lado, os sovietes representavam e ditavam cada vez mais, quais as tarefas e ações que os trabalhadores, soldados e camponeses, deviam efetuar.
Em Petrogrado, o soviete local era dirigido majoritariamente pelos mencheviques. Estes argumentavam que o Governo Provisório deveria permanecer na sua atual formação, e que a classe operária e seus representantes, deveriam ter o papel de pressionar o governo para ter suas reivindicações atendidas, jamais buscar derrubar ou se confrontar diretamente com o Governo Provisório. Para os mencheviques, a Rússia não estava “pronta” para uma revolução socialista. Portanto cabia a tarefa de desenvolver a economia do país dentro do modo de produção capitalista.
O tema da guerra não era uma questão menor. A participação ou não da Rússia no confronto que se alastrava sem ter um fim próximo, gerando a morte dos soldados e diversos problemas internos, era um tema que perpassava qualquer discussão.
Tseretel e os demais líderes mencheviques que atuavam nos sovietes garantiam o apoio destes ao Governo Provisório. Eles faziam a defesa que a guerra deveria continuar, com uma postura defensiva, impedindo que a pátria fosse atacada, e sem cometer anexações. A posição dos mencheviques era uma posição intermediária, que se colocava entre o governo e sua vontade de permanecer no conflito bélico, e a vontade dos trabalhadores e dos soldados, que desejavam a paz.
No dia 23 de março, Petrogrado amanheceu diferente. Um clima de solidariedade, revolta e ao mesmo tempo de esperança, cruzava o ar e avenidas. Centenas de milhares de pessoas marcharam pelos Campos de Marte, na cidade de Petrogrado, em um funeral dos mártires da Revolução de Fevereiro. Foram 800 mil pessoas no enterro das vítimas que deram suas vidas durante o processo revolucionário. Aquela marcha se transformou também em uma gigantesca passeata contra a guerra e a permanência da Rússia na mesma.
As notícias do ocorrido em Petrogrado rapidamente se espalhavam de front em front. Afinal foi a maior mobilização daquele ano. Superior inclusive as que ocorreram antes da derrubada do czar. Os generais tentavam em vão impedir que os soldados soubessem do que estava acontecendo na Rússia. Mas, logo que estes ficavam sabendo das manifestações contra a guerra, e do processo revolucionário de Fevereiro, ganhavam ânimo e perdiam o resto da confiança que ainda tinham em seus superiores.
Semanas depois, ocorria uma nova reunião entre os representantes do governo com o representante dos sovietes. A Rússia precisava de um empréstimo de seus aliados, caso quisesse continuar na guerra. No dia 18 de abril, Milyukov, o ministro do Exterior, envia uma nota aos governos dos aliados, afirmando que o país deseja continuar “a guerra em total acordo com os aliados e cumprindo suas obrigações”. O comunicado de Milyukov trazia também que a revolução fortaleceu a vontade popular de que a guerra terminasse de forma vitoriosa para os russos.
Obviamente a nota foi mal recebida pelos sovietes. Em uma sessão noturna especial ocorrida no dia seguinte, o Comitê Executivo dos Sovietes tratou de discutir a nota, e rechaçar a mesma. Os sovietes não aceitariam que o Governo Provisório falasse ou agisse sem consultá-los previamente. O duplo poder se intensificava.
As Teses de Abril e as ruas se encontram
Os dias naquela Rússia revolucionária passavam rápidos e ao mesmo tempo devagar. O relógio da história andava de forma brutal. A experiência dos trabalhadores aumentava de hora em hora. Os acontecimentos diários valiam por anos e até décadas. Ao mesmo tempo os dias pareciam durar mais que 24 horas. Eram cheios de acontecimentos e contradições.
Na noite de 20 de abril, os dirigentes mencheviques do soviete de Petrogrado solicitaram ao Governo Provisório que uma nova nota fosse publicada corrigindo Milyukov e adotando um tom mais pacifista. Não adiantou. Pelo contrário. Os mencheviques foram convencidos por Kerensky que uma mera explicação sobre as posições do ministro do exterior era suficiente.
Os mencheviques se acalmaram, porém, o mesmo não aconteceu com as massas. O dia 21 amanheceu com uma série de protestos pela cidade. As ruas, esquinas, avenidas e praças estavam tomadas. Nas regiões operárias as fábricas estavam paradas e os trabalhadores haviam entrado em greve. Grupos de pessoas se reuniam e faziam dali mesmo uma assembleia ou uma reunião pública para discutir o que fazer.
O dia 21 de abril marcou também a primeira vez, desde fevereiro, que o partido bolchevique dirigia a ampla massa de trabalhadores e setores populares que se colocavam em luta. A leitura apresentada por Lênin dias antes se mostrava correta. As Teses de Abril se materializavam nas mãos, braços, pés e gritos dos trabalhadores que tomavam as ruas de Petrogrado.
Uma multidão de trabalhadores saia dos detritos operários como Vyborg, e caminhava rumo às principais avenidas da cidade, como Nevsky. Muitos destes trabalhadores estavam armados. A palavra de ordem “Abaixo Milyukov” era um acordo geral, apesar de alguns abrirem faixas pedindo o imediato fim do Governo Provisório.
A luta de classes se acirrava. Na avenida Nevsky e na Sadovaya, apoiadores do Governo Provisório se reuniam. Os confrontos nas ruas se multiplicavam. E entrou em cena um dos atores principais da Revolução de Outubro.
Diante do caos que tomava as ruas de Petrogrado, o comandante chefe do distrito foi informado. Kornilov se coloca a disposição de Milyukov para deter as ações dos manifestantes. O general garantia que tinha forças suficientes para por fim as ações dos trabalhadores organizados. Ele ordena que dezenas de unidades de guarnição se dirigissem a praça do palácio. Suas ordens, no entanto, não são atendidas.
O Comitê Executivo dos Sovietes entra em contato com o Governo Provisório colocando que a ação das tropas pode gerar uma verdadeira carnificina e uma situação ainda mais complicada. Kornilov e delegados representado o Comitê se reúnem e após uma longa negociação, o general decide cancelar suas ordens iniciais. Ele envia uma mensagem telefônica para todas as tropas, anunciando para estas permanecerem nos quarteis. Ao mesmo tempo, o Comitê Executivo dos Sovietes anunciou que os “camaradas soldados não deveriam sair dos quarteis sem a ordem expressa do Comitê Executivo”. Kornilov se viu derrotado. Os mencheviques por sua vez, assim como os Socialistas-revolucionarios, não queriam criar um impasse com o Governo Provisório, e rapidamente tentaram fazer com que os trabalhadores voltassem para suas casas.
Os bolcheviques viram pela primeira vez em alguns meses suas bandeiras e suas palavras de ordem serem adotadas por um setor amplo da classe trabalhadora. Apesar disso, o partido sabia que ainda era pouco. Os bolcheviques não tinham maioria da classe, e nem maioria dos sovietes. Eles não dirigiam a classe trabalhadora. Os sovietes, apesar de sua imensa força, ainda estavam se consolidando, e dado equilíbrio de poder existente naquele mês de abril, qualquer ação que não conte com maioria da classe, derramaria o país em uma guerra civil.
Lênin foi categórico. O slogan que setores da classe levantaram e que alguns bolcheviques defendiam de “abaixo o Governo Provisório” era prematuro e estava equivocado. Lênin dizia sempre que se debatia o tema “nós não somos blanquistas, somos marxistas”, “precisamos ganhar maioria da classe antes”. Era preciso superar a hegemonia menchevique nos sovietes operários, coisa que se mostrava possível.
Os últimos dias de abril
Os acontecimentos nas últimas 48 horas mostravam para o Governo Provisório que nenhuma decisão que tomassem poderia ser feita sem que os Sovietes estivessem minimamente de acordo. Caso contrário, uma explosão incontrolável dos trabalhadores poderia aumentar os ânimos da luta de classes. E não havia nada mais assustador para os liberais que compunham o governo do que isso.
Assim, os cadetes e os capitalistas resolveram tentar diminuir o poder dos sovietes trazendo para dentro do governo as forças socialistas. Mencheviques e Socialistas Revolucionários passariam a receber mais espaço no Governo Provisório, em uma tentativa de anular a situação de duplo poder existente. Estes dois partidos colocaram como condição para entrarem no governo as demissões de Milyukov e Guchhkov. Os capitalistas e latifundiários russos não tiveram dúvidas diante das exigências, era preciso perder os anéis para preservar os dedos.
Governo Provisório e Soviete de Petrogrado chegaram a um acordo para a conformação de um novo governo de coalizão no dia 22 de abril. Seis ministros de forças socialistas entraram neste novo governo, eram dois mencheviques, dois socialistas-revolucionários e dois populistas. Os bolcheviques recusaram a participar do governo, e foram seguidos apenas pelo presidente do Comitê Executivo dos Sovietes, Nilolay Chkheidze, que se recusou a aceitar um cargo de ministro.
Este novo Governo que se formava buscava por parte dos mencheviques e socialistas revolucionários desenvolver o capitalismo dentro da Rússia, assim como uma democracia burguesa, garantindo alguns direitos e avanços para a classe trabalhadora. Por parte dos Cadetes e dos grandes capitalistas russos, esse governo com forças socialistas era um mal necessário, mas que seria momentâneo, para impedir o fortalecimento dos sovietes.
Os bolcheviques por sua vez, resolveram apostar nos sovietes, pois viam nestes o germe para um outro tipo de Estado. Criado a partir de baixo. Lênin conseguiu enxergar que as tarefas democráticas da Revolução Russa, como as liberdades democráticas, reforma agrária, fim da guerra, somente poderiam ser feitas por meio das ações da classe trabalhadora e seus aliados, como os camponeses. A burguesia russa não poderia cumprir esta tarefa, e nem queria fazê-la.
Os dias de Abril foram fundamentais para que estas conclusões de Lênin tivessem sua primeira prova na história. Naqueles rápidos e ao mesmo tempo demorados dias, os mencheviques mantiveram maioria dos sovietes operários, mas alguns trabalhadores já olhavam com desconfiança para suas lideranças.
Os dias de Abril abriram as portas para os acontecimentos que viriam nos meses seguintes. Abril marcou aquele encontro do sujeito com a história, da teoria, com a prática, que viria a ser consumado alguns meses depois em Outubro.
As Teses de Lênin se enfrentaram com a Velha Guarda Bolchevique e com a nomenclatura do partido, e saiu vitoriosa porque encontrou na ação revolucionária das massas, nos comitês populares, nos sovietes, seu ponto de apoio.