Marcelo BadaróNotas Programáticas

Notas Introdutórias como contribuição ao debate da esquerda socialista no Brasil

Por: Marcelo Badaró Mattos
*Publicado, na íntegra, no site da NOS, como parte do Congresso da organização e em versão resumida no Blog Junho.

O sentido destas Notas

Encontram-se em aberto uma série de debates fundamentais entre a esquerda socialista brasileira – e aqui me refiro de forma ampla tanto às organizações partidárias, com registro eleitoral ou não, que se afirmam representativas da classe trabalhadora e se posicionaram nos últimos anos à esquerda do Partido dos Trabalhadores, quanto aos movimentos sociais mais combativos que mantiveram sua autonomia frente aos governos petistas e reivindicam o horizonte socialista. Debates de natureza organizativa, programática e teórica. Em aberto, porque para uma esquerda socialista minimamente (auto)crítica não é possível reivindicar certezas em relação às respostas conjunturais e aos caminhos para a ativação do socialismo ante ao conjunto profundo de reveses dos últimos anos.

Tais debates demandam um esforço coletivo, ou não seriam debates, e uma disposição para a construção de sínteses a partir da diferentes pontos de vista, ainda que convergentes nos objetivos estratégicos socialistas. Ninguém é capaz de resolver os dilemas que enfrentamos a partir de elaborações individuais. No entanto, é sempre necessário que algumas reflexões condensadas impulsionem novas discussões. Esse é o sentido destas Notas: contribuir para as discussões programáticas e organizativas em curso entre a esquerda socialista brasileira, através muito mais de um levantamento de questões inescapáveis do que da apresentação de respostas definitivas.

Por certo não parto do zero, mas sim de um conjunto de debates estabelecido há mais ou menos tempo entre nós, tendo por anteparo a longa trajetória do debate socialista internacional, especialmente o ancorado nas propostas do materialismo histórico.

É bom esclarecer que não escrevo a partir de uma posição externa ou neutra em relação ao campo. Pelo contrário, sintetizo reflexões acumuladas na participação em esforços coletivos de reflexão, organização e intervenção à esquerda. Como professor universitário, participei e participo de uma série de iniciativas coletivas de debate marxista, com destaque para o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo da Universidade Federal Fluminense (NIEP-Marx), além de militar, desde os anos 1980, no movimento sindical docente. No período mais recente, tenho participado da construção e consolidação do espaço de debate aberto pelo Blog Junho, frente ampla e aberta de elaborações intelectuais socialistas. Não por outra razão, o blog é uma plataforma a partir da qual as ideias sistematizadas nessas Notas são divulgadas. No plano partidário, participei da construção do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ao qual continuo filiado, e hoje tomo parte da construção da Nova Organização Socialista (NOS), que desde 2016 se apresenta como uma contribuição ao processo de reorganização da esquerda socialista no Brasil. Por isso mesmo, o diálogo com os camaradas da NOS é neste momento fundamental para o esforço que aqui desenvolvo.

O projeto destas Notas é dividido em sete etapas. A primeira, que se segue a esta introdução, é identificar as principais linhas do debate sobre a natureza do capitalismo no Brasil. Indissociável desta primeira discussão está a segunda, referente ao caráter da classe dominante aqui atuante. Ao que se seguirá o debate sobre o Estado e as peculiaridades das formas de dominação através dele exercitadas por essa classe dominante. O quarto texto apresentará a reflexão sobre o sujeito potencial da transformação social revolucionária, a classe trabalhadora. Em seguida, pretendo apresentar contribuições ao debate sobre três desafios centrais que a esquerda socialista precisa enfrentar: o da organização, o da mobilização e o da elaboração programática.

Caso o tempo, que governa nossas vidas a partir de ditames que nos são estranhos, permita, a intenção é publicar uma nota a cada quinze dias, aproximadamente. Tal calendário e a própria lógica da proposta impõem limitações. A principal delas é a impossibilidade de diálogo com eventuais contribuições e críticas que possam ser estimuladas pela publicação de cada texto. É claro que todas serão bem vindas e, em um momento posterior, serão tomadas em conta. Afinal, é exatamente para um debate mais amplo que estas Notas visam contribuir.

1ª nota

O capitalismo no Brasil

As dimensões da economia capitalista brasileira não são desprezíveis. Em 2014, o país possuía o 7º maior Produto Interno Bruto (PIB) entre as nações do Globo, segundo o FMI. A recessão ali iniciada fez com que no ano seguinte a economia brasileira tivesse caído para a 9a. posição, com um PIB calculado em cerca de 1,77 trilhões de dólares.[1] As dez maiores economias do mundo acumulam cerca de 65% do PIB mundial, demonstrando o grau elevado de concentração de riquezas nos países mais ricos. Ainda assim, se tomarmos em conta que os valores do PIB brasileiro correspondem a aproximadamente 10% do valor do PIB da maior economia capitalista, a estadunidense, percebemos que mesmo entre as dez maiores economias do mundo há grandes assimetrias. Dados frios sobre o PIB pouco revelam sobre outros aspectos importantes das relações econômicas, mas podem servir de ponto de partida para uma localização inicial do problema que aqui queremos privilegiar.

Impressiona também a dimensão do salto de desenvolvimento industrial vivido pelo país a partir dos anos 1930, quando o ritmo do crescimento industrial ultrapassa o agrícola. Se no início do século XX, cerca de 80% da produção nacional vinha da agricultura e 20% da indústria, já no fim dos anos 1950, a indústria ultrapassava a agricultura. Nos anos 1970, a indústria brasileira contribuía com cerca de 40% do PIB, enquanto a agricultura via sua contribuição reduzida a 10% (os outros 50% vinham do setor de serviços).[2] No entanto, impressiona ainda mais que tal salto de desenvolvimento capitalista, que colocou o país entre as 10 maiores economias do mundo, tenha se produzido a partir de um aprofundamento da desigualdade social em escala gigantesca. Ainda que com diferenças segundo os indicadores, o país encontra-se sempre entre os piores nos rankings de igualdade/desigualdade social.[3]

Portanto, o Brasil é uma economia capitalista plenamente desenvolvida, entre as dez maiores do mundo. Ainda assim, a dinâmica econômica capitalista só pode ser compreendida, como totalidade contraditória que é, na sua dimensão global. E nessa dimensão, as assimetrias e desigualdades entre as economias nacionais são evidentes e não decorrem de diferenças entre “etapas” de crescimento, mas sim da relação de dependência da maioria das economias nacionais às nações de industrialização mais antiga, que iniciaram o processo de expansão capitalista mundial. Por isso mesmo, entre os elementos necessários ao entendimento da economia brasileira, este texto vai privilegiar uma questão: a das relações entre o desenvolvimento histórico e o quadro atual do capitalismo no Brasil com a acumulação capitalista em sua dimensão global. Tal questão de forma alguma é suficiente para explicar a acumulação de capital, visto que seria necessário analisar outros elementos essenciais, como a forma assumida pelas relações de produção no contexto local, para ficarmos apenas em um exemplo. Entretanto, sempre é necessário partir de algum lugar. E com o desenrolar da argumentação, outras questões serão postas.

Um pouco de história

O Estado-Nação a que hoje nos referimos como Brasil foi construído a partir do território colonizado por Portugal nas Américas. Foi como colônia que se atravessou aqui a etapa da chamada acumulação primitiva de capital, através de um circuito de trocas comerciais desiguais, destinadas a garantir acumulação na metrópole, por sua vez inserida em outros circuitos desiguais de troca na Europa. Ou seja, a colônia portuguesa na América e o Brasil, mais tarde, surgiram inseridos em uma economia capitalista internacional em construção, desempenhando o papel subordinado de fornecedores de gêneros primários, produzidos em grandes unidades agrícolas, controladas por um restrito grupo de donatários/proprietários. Com a revolução industrial em fins do século XVIII e a quebra do controle monopolístico do comércio colonial por Portugal, no contexto das Guerras Napoleônicas, a Colônia (e depois o novo Estado nacional) assumiria também importância crescente como mercado consumidor de produtos industrializados e, progressivamente, como mercado para a exportação de capitais.

Tal inserção subordinada no circuito de trocas capitalistas internacionais, embora determinante, não é suficiente para explicar a dinâmica econômico-social local. A produção de gêneros agrícolas para exportação exigiu o emprego de uma força de trabalho numerosa, que não seria suprida pelos habitantes originários da terra, chamados por eles de índios, em função do genocídio colonizador, mas também da resistência à escravização e da dispersão no território. Também não o poderia ser por trabalhadores de origem portuguesa, pois mesmo que houvesse disponibilidade desses braços em abundância, nada os prenderia à plantation monocultora numa situação em que abundavam terras desocupadas, que buscariam ocupar como camponeses autônomos. A solução envolveu a importação de força de trabalho escravizada do continente africano. Assim, segundo as estimativas mais bem documentadas disponíveis, mais de cinco milhões e oitocentos mil homens e mulheres de diversas regiões do continente africano foram aprisionados, vendidos como mercadorias e embarcados à força para o Brasil, entre os séculos XVI e XIX. Quase a metade dos cerca de doze milhões e meio de pessoas trazidas assim da África para as Américas.[4] O conjunto das relações sociais nos mais de 300 anos que se seguiram ao início do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados africanos foi em grande medida definido pela dominância da escravidão.

Por isso, interpretações que destacam que o “sentido da colonização” residiu no estabelecimento da grande propriedade monocultora, destinada a garantir os lucros comerciais da metrópole, explicam parte da história da economia colonial, mas a dominância das relações de produção baseadas na escravidão gerou uma dinâmica social própria, um modo de produção peculiar, escravista e colonial.[5]

Interpretações da história e programas de intervenção

Havia, porém, algo em comum entre essas distintas ênfases explicativas sobre a economia colonial e suas variáveis: constituem uma superação das teses que procuravam entender o passado brasileiro a partir do modelo rígido da evolução dos modos de produção típicos da história europeia (escravismo antigo, feudalismo, capitalismo). Uma interpretação esquemática, derivada do reducionismo stalinista e aqui em grande parte reproduzida pelo PCB, entre os anos 1920 e 1960.

Análises históricas muito equivocadas só podem alimentar programas políticos destinados ao fracasso. Embora com nuances,[6] a tese de que o Brasil teria vivido um passado feudal, que deixaria resquícios ainda em meados do século XX, na figura do latifúndio exportador (aliado do imperialismo no país) alimentou a estratégia da revolução por etapas, destinada em um primeiro momento a remover os entraves feudais ou semi-feudais ao pleno desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. O que só poderia ser alcançado pela aliança do proletariado com uma suposta “burguesia nacional”, para derrotar o latifúndio e o imperialismo.

Assim, em 1958, o PCB definia que as principais contradições vividas pela sociedade brasileira giravam em torno da questão nacional e do pleno desenvolvimento do capitalismo:

“Como decorrência da exploração imperialista norte-americana e da permanência do monopólio da terra, a sociedade brasileira está submetida, na etapa atual de sua história, a duas contradições fundamentais. A primeira é a contradição entre a nação e o imperialismo norte-americano e seus agentes internos. A segunda é a contradição entre as forças produtivas em desenvolvimento e as relações de produção semi-feudais na agricultura. O desenvolvimento econômico e social do Brasil torna necessária a solução destas duas contradições fundamentais.”[7]

É claro que os comunistas reconheciam que a economia capitalista brasileira se industrializava e que existia a contradição entre o proletariado e a burguesia. Porém, defendiam que naquela etapa, tal contradição “não exig[ia] uma solução radical”. Por isso, afirmavam que “nas condições presentes de nosso país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo”. De uma avaliação desse tipo decorria, conforme o mesmo documento, o seguinte horizonte estratégico: “A revolução no Brasil (…) não é ainda socialista, mas anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática”.

As teses pecebistas foram criticadas desde os anos 1930, por forças políticas que se opuseram ao partido pela esquerda, mas não tiveram sucesso em construir uma influência de massas.[8]Nas décadas seguintes, seriam criticadas também por intelectuais de diferentes trajetórias. Nos anos 1960, uma das principais fontes de crítica e formulação alternativa não surgiria dos gabinetes universitários, mas de uma organização política marxista fundada em 1961, a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (mais conhecida como POLOP). Um dos elementos centrais da crítica da POLOP à leitura da realidade e ao horizonte estratégico do PCB era a avaliação de que a economia e a sociedade brasileira eram já completamente capitalistas e que, portanto, a revolução ou seria socialista ou não ocorreria. No entanto, a evolução e a dinâmica do capitalismo brasileiro apresentavam características distintas em relação aos países que primeiro se industrializaram. Tratava-se de um capitalismo que se desenvolveu de forma dependente em relação à acumulação de capital nas economias capitalistas que chegaram ao capitalismo no século XIX e se constituíram como potências imperialistas. Através de uma análise da especificidade do capitalismo brasileiro (e latino-americano), foi a partir dos debates desencadeados pela POLOP que se desenvolveu uma “teoria marxista da dependência”, que influenciaria todo o debate das organizações de esquerda após o golpe de 1964 e também uma geração de intelectuais universitários, que utilizaram ou reinterpretaram a ideia do capitalismo dependente. Em seu documento programático mais conhecido, de 1967, o “Programa Socialista para o Brasil”, a POLOP assim definia a situação dependente do capitalismo brasileiro:

“Assim também [atua] o imperialismo, que não penetra no Brasil contra os interesses do capitalismo interno; ao contrário, o capital nacional só se desenvolve integrando-se com o capital imperialista. Os choques entre eles — que também configuram uma relação de ‘cooperação antagônica’ — não se sobrepõem ao interesse maior de explorar a mais-valia nacional. Daí que também as medidas antiimperialistas radicais só possam destruir as bases do próprio regime no país. Quando o imperialismo tomou conta das regiões mais atrasadas do globo e as integrou no mundo capitalista na qualidade de regiões dependentes, ao mesmo tempo cortou suas possibilidades de repetir o processo de desenvolvimento trilhado pelas nações capitalistas avançadas.”[9]

Algumas referências teóricas

Para superar os equívocos de caracterização do PCB, foi necessário superar também o esquematismo teórico de uma versão stalinizada do marxismo, transmitida através dos manuais soviéticos. Retomar as reflexões de Marx a partir de seus textos originais foi um primeiro passo. Nos limites de uma síntese muito rápida, vale lembrar que as formulações de uma “teoria marxista da dependência” partiram da discussão feita em O Capital sobre a acumulação capitalista e sua dinâmica contraditória. Quando, no Livro III de sua obra mais importante, Marx explica a lei da tendência à queda da taxa de lucro, sintetiza uma série de argumentos desenvolvidos nos volumes anteriores do livro para explicar a acumulação capitalista. Entre eles, o de que embora a acumulação ampliada de capital levasse à incorporação de massas cada vez maiores de trabalhadores e trabalhadoras (trabalho vivo) ao processo produtivo, a necessidade de constante ampliação da produtividade do trabalho e a elevação da massa de mercadorias produzidas e postas em circulação alteravam a proporção entre o volume de máquinas, equipamentos, tecnologia, matérias primas envolvidos na produção das mercadorias (trabalho morto) e aquele trabalho vivo do qual se extraía a mais-valia (ou mais-valor, conforme preferem os tradutores mais recentes). Correspondendo a mais-valia ao lucro capitalista (apropriado concretamente de variadas formas, como lucro industrial, comercial, juros, etc.), mesmo que massas de lucro maiores possam ser geradas, sua proporção em relação ao capital investido na produção, ou seja, a taxa de lucro, tende a cair. Nas palavras de Marx:

“Como a massa de trabalho vivo empregado diminui sempre em relação à massa de trabalho objetivado, posta por ele em movimento, isto é, o meio de produção consumido produtivamente, assim também a parte desse trabalho vivo que não é paga e que se objetiva em mais-valia tem de estar numa proporção sempre decrescente em relação ao volume de valor do capital global empregado. Essa relação da massa de mais-valia com o valor do capital global empregado constitui, porém, a taxa de lucro, que precisa, por isso, cair continuamente.”[10]

No entanto, Marx afirmava que a queda da taxa de lucro era uma tendência, que só poderia se manifestar plenamente através de períodos longos de tempo, pois “as mesmas causas que acarretam a queda da taxa geral de lucro provocam efeitos contrários, que inibem, retardam e em parte paralisam essa queda. Eles não anulam a lei, mas debilitam seu efeito.”[11] Entre as “contratendências” que Marx analisa, algumas são fundamentais para o entendimento de uma economia capitalista dependente. Por exemplo, a primeira “causa contrariante” listada por Marx é justamente a elevação do grau de exploração do trabalho (elevação da taxa de mais-valia), que pode ser obtida de diversas maneiras, especialmente através da ampliação do uso das máquinas e novas tecnologias e do alongamento da jornada e/ou da intensidade do trabalho. A seguir, Marx acrescenta uma outra possibilidade: “a compressão dos salários abaixo do seu valor”, ou seja, o pagamento de salários inferiores ao mínimo necessário para a manutenção e reprodução da força de trabalho. Uma outra “causa contrariante” seria o comércio exterior. Nesse ponto Marx mostra que, se as trocas comerciais internacionais estiveram na origem da acumulação capitalista, com o tempo, elas se tornam fundamentais para a reprodução ampliada do capital pela necessidade constante de ampliação de mercados consumidores dos bens industrializados. Demonstra também que, se por um lado o lucro no comércio exterior pode ser maior, porque as empresas exportadoras podem vender mercadorias com preços mais elevados que no mercado interno (pela inexistência dessa produção ou pelo desenvolvimento industrial mais atrasado dos países compradores), por outro a taxa de mais-valia (e, portanto, de lucro) dos capitais externos investidos no interior desses países coloniais ou recém-saídos da situação colonial é maior, justamente por que ainda apresentam relações de produção menos desenvolvidas. Nas palavras de Marx:

“no que tange aos capitais investidos em colônias etc., eles podem proporcionar taxas de lucro mais elevadas porque lá, em geral, por causa do menor desenvolvimento, a taxa de lucro é mais alta, assim como é mais alta a exploração do trabalho graças ao emprego de escravos, cules etc.”[12]

Por certo que a tendência à queda da taxa de lucro também se manifestaria nessas economias incorporadas à lógica do capital pelo comércio exterior, ampliando globalmente as contradições do sistema. Com sua análise, Marx demonstrava como a acumulação capitalista tendia a conectar parcelas cada vez mais amplas do planeta, submetendo-as a um mesmo processo. Um processo de desenvolvimento global, porém profundamente desigual, pois as assimetrias entre os países que inicialmente desenvolveram o modo de produção capitalista e os demais, arrastados pelos primeiros à submissão às leis da acumulação, tendem a se perpetuar. Em outra passagem, acrescenta que a

“produção global se impõe como lei cega dos agentes de produção (…), submetendo o processo de produção a seu controle coletivo. Com isso (…) se exige que países em que o modo de produção capitalista não esteja desenvolvido consumam e produzam num grau que é adequado aos países do modo de produção capitalista.”[13]

Nas décadas que se seguiram à redação de O Capital por Marx, o capitalismo viveria uma nova grande crise que confirmava a sua afirmação de que periodicamente a ação daquelas tendências correlatas e antagônicas da acumulação capitalista “desafoga em crises”. E estas crises “são sempre apenas soluções momentâneas violentas das contradições existentes”.[14]A crise de que se iniciou em 1873 e o momento que a ela se seguiu acentuaram a concentração e a centralização de capitais, a que Marx também se referia em suas formulações.

Três características desse processo chamaram atenção dos marxistas da virada do século XIX para o XX. De um lado, a centralização de capitais chegou a um estágio em que alguns conglomerados de grandes empresas (chamados à época de trusts) passaram a controlar fatias muito grandes do mercado consumidor das mercadorias que produziram, em escala nacional e internacional. Além disso, essas grandes empresas e associações entre empresas eram potencializadas pela combinação cada vez mais inextricável entre o capital dos bancos e o das indústrias. Por outro lado, o comércio exterior e a exportação de capitais tiveram sua importância não apenas confirmada, mas mesmo potencializada, num período em que o “neocolonialismo” levou à disputa – que assumiria um caráter genocida com as Guerras Mundiais – entre as maiores economias capitalistas pelo controle de territórios coloniais (ou mercados consumidores de países independentes politicamente, mas economicamente dependentes). Hilferding, Kautsky, Rosa Luxemburgo e Bukharin foram alguns dos marxistas que se dedicaram a interpretar aquela conjuntura a partir de uma categoria-chave, que não aparecia como tal em Marx: Imperialismo.[15] Entre os teóricos do Imperialismo, aquele cuja obra ganharia maior repercussão foi Lenin.

Lenin buscaria em Hilferding a análise da associação entre capital bancário e industrial, formando o que a partir daquelas obras ficou conhecido como capital financeiro. Também na obra do mesmo economista austríaco, Lenin buscou referências para tratar dos trusts como “monopólios” e para discutir o Imperialismo. De forma distinta de Hilferding e outros envolvidos no debate, porém, Lenin entendia que o Imperialismo não era apenas uma política do capital para responder aos desafios daquela conjuntura instaurada com a grande crise, mas constituía-se mesmo como uma nova – e superior – fase do capitalismo. A passagem mais conhecida de seu estudo Imperialismo: fase superior do capitalismo, resumia em cinco características a fase imperialista, também chamada por ele de “capitalismo monopolista”:

“1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse “capital financeiro” da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.

O imperialismo é, pois, o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes.”[16]

Lenin, na mesma obra, afirmava que o capitalismo desenvolvia-se de forma mais acelerada na etapa imperialista, “mas este crescimento (…) é cada vez mais desigual”.[17] Seus prognósticos sobre a decomposição das economias capitalistas mais desenvolvidas como consequência desse desenvolvimento desigual podem ser vistos como produto de uma época marcada pela guerra em escala até então inédita. Porém, a ideia de que o imperialismo acelerava as contradições de um desenvolvimento desigual ganharia ainda maior sentido nos anos seguintes, nas análises sobre a Revolução de Outubro.

Em sua História da Revolução Russa, Leon Trotsky partiu justamente dessa ideia para explicar como a revolução socialista acabou por ser vitoriosa em um país mais “atrasado” do que as primeiras e mais “avançadas” economias industriais. Envolvida pela exportação de capitais e comércio exterior de um capitalismo em expansão, na sua fase imperialista, a Rússia que até a segunda metade do século XIX mantinha relações de trabalho baseadas na servidão no campo, viveu um rápido salto industrializante, responsável pelo surgimento de um proletariado altamente concentrado em grandes fábricas e que se aproveitaria da herança secular de luta socialista no ocidente europeu para desenvolver sua consciência política em direção à necessidade da revolução. Com Trotsky fixa-se o termo “desenvolvimento desigual e combinado” para referir-se à questão:

“As leis da história não têm nada em comum com o esquematismo pedantesco. O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não se revela, em nenhuma parte, com maior evidência e complexidade do que no destino dos países atrasados. Açoitados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados se veem obrigados a avançar aos saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura decorre outra que, por falta de nome mais adequado, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confusão de distintas fases, ao amálgama de formas arcaicas e modernas.”[18]

De volta ao Brasil contemporâneo

A reflexão mais detida sobre referências teóricas como as sintetizadas rapidamente acima permitiu que as interpretações do desenvolvimento capitalista no Brasil adquirissem maior complexidade, não apenas no debate político, como vimos em relação à POLOP, mas também nas análises de economistas e cientistas sociais universitários, desde os anos 1960.

O sociólogo Florestan Fernandes nos apresenta um excelente exemplo de análise marxista da gênese e desenvolvimento do capitalismo no Brasil que discute de forma original a ideia de capitalismo dependente, com base na aplicação não esquemática das reflexões sobre a acumulação capitalista desenvolvidas por Marx, associadas às teorias do imperialismo e à ideia de desenvolvimento desigual e combinado. Em seu esforço para explicar a revolução burguesa na periferia dependente, Florestan evitou tanto a ideia de que “determinantes universais” se aplicassem a todas as situações de desenvolvimento capitalista, que repetiriam sempre as mesmas etapas, quanto o que chamou de um “falso problema correlato”, o da explicação de uma suposta excepcionalidade brasileira (“por que a história não se repetiu?”). Na crítica a essas perspectivas, apresentou uma interpretação do desenvolvimento capitalista no Brasil que destacava as “conexões específicas da dominação burguesa com a transformação capitalista, onde o desenvolvimento desigual interno e a dominação imperialista externa constituem realidades intrínsecas permanentes”.[19]

Compartilhando essas mesmas referências e por um caminho relativamente distinto, Ruy Mauro Marini vinha, desde a década de 1960, elaborando ricas análises sobre o capitalismo dependente no Brasil. Atuando na POLOP desde seus primeiros momentos, Marini foi professor da UNB e exilou-se após sofrer com as perseguições que se seguiram ao golpe de 1964, lecionando e militando no México e no Chile. Com seus estudos (assim como os de Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra), desenha-se o corpo central da chamada teoria marxista da dependência.[20]

Não havendo aqui espaço para avançar mais na discussão do conjunto das contribuições apresentadas pelas análises de Marini, fica o registro de duas de suas mais instigantes sugestões. A primeira de que, premido pela dependência em relação ao imperialismo, o capitalismo brasileiro necessitava extrair uma quantidade suficiente de mais-valor para garantir a reprodução do capital internamente, mas também para remeter parte dos lucros para as empresas e “investidores” externos (através das “trocas desiguais” que caracterizam o comércio externo), gerando uma perenização de formas de “compressão do salário abaixo de seu valor”, que é própria das economias dependentes, para além das formas de ampliação “relativa” e “absoluta” do mais-valor. Essa forma acaba por definir uma “superexploração” da força de trabalho. A essa sugestão daremos atenção em outro momento. Aqui nos concentraremos numa outra: a crise capitalista atravessada pelo Brasil nos anos 1960 poderia ser explicada pela lei de tendência à queda da taxa de lucros, que originaria a busca de uma saída também pela expansão do comércio externo – não apenas o de produtos primários, como na primeira metade do século – mas também o de produtos industrializados, descrita por Marx, como vimos, como uma das “causas contrariantes” daquela tendência.

Ao buscar ampliar a pauta de exportações com produtos industrializados – inclusive bens de consumo duráveis – e ampliar os mercados e as fatias desses mercados ocupados pela produção brasileira, a política econômica da ditadura iniciou um processo que Marini iria apreender através da categoria “subimperialismo”. O termo tentava dar conta do fato de que tal expansão para mercados externos, embora pudesse gerar tensões em alguns momentos, não significava de forma alguma uma ruptura nos laços de dependência com o imperialismo (especialmente o estadunidense), até porque a maior parte das indústrias instaladas no país com capacidade de atender a esses novos mercados externos era de capital multinacional ou associado. O termo aparece pela primeira vez em um artigo de 1965, mas reapareceria em vários outros escritos do autor nos anos seguintes. Em uma das definições apresentadas por Marini:

“O subimperialismo corresponde à expressão perversa da diferenciação sofrida pela economia mundial, como resultado da internacionalização capitalista, que contrapôs ao esquema simples de divisão do trabalho – cristalizado na relação centro-periferia, que preocupava a CEPAL – um sistema de relações muito mais complexo. Nele, a difusão da indústria manufatureira, elevando a composição orgânica média nacional do capital, isto é, a relação existente entre meios de produção e força de trabalho, dá lugar a subcentros econômicos (e políticos), dotados de relativa autonomia, embora permaneçam subordinados à dinâmica global imposta pelos grandes centros.”[21]

O debate posto por Marini ganhou atualidade nos últimos anos, diante da expansão de investimentos de algumas empresas sediadas no Brasil para mercados externos, especialmente, mas não apenas, latino-americanos. Agora, porém, ia-se além da “plataforma” de exportações de mercadorias produzidas pelo grande capital aqui instalado, que havia sido percebida por Ruy Mauro no período da ditadura. Se as construtoras já haviam ensaiado a atuação multinacional em paralelo ao giro exportador da ditadura,[22] agora outras “multinacionais” brasileiras assumiram um outro perfil, que envolve não apenas a exportação de manufaturados, mas principalmente o investimento direto no exterior, em que grandes empresas como Petrobrás e Vale do Rio Doce, além das mesmas empreiteiras, possuem papel destacado.

Para termos uma noção da dimensão dessa expansão, alguns poucos exemplos podem bastar. A Petrobrás, ponta de lança do processo de internacionalização de capitais sediados no Brasil, atua em 18 países de quatro continentes.[23] Quando o governo do Equador rompeu contratos com a empresa, a partir de 2008, por considera-los lesivos aos interesses nacionais, a forma predatória em relação às economias mais frágeis dos países vizinhos ficou evidente. Apenas 18% dos lucros com a venda do Petróleo equatoriano eram apropriados pelo Estado, que concedera direito quase irrestrito de uso de suas riquezas nacionais a empresas estrangeiras. A Petrobrás não aceitou as novas regras postas pelo governo e cancelou operações no país. As negociações que se seguiram resultaram, em 2012, numa indenização de 270 milhões de dólares à empresa brasileira.[24] No movimento privatizante recente, hipocritamente denominado de “desinvestimento”, a Petrobrás já se desfez de uma parcela dos ativos na América Latina. Pelo total arrecadado com a venda desses empresas e participações societárias – cerca de 1,4 bilhões de dólares – podemos ter uma ideia do volume de negócios no exterior da empresa.[25]

Na esteira dos escândalos de corrupção envolvendo empreiteiras brasileiras, que atuam no exterior em ligação com a Petrobrás ou sozinhas, tomamos conhecimento, por exemplo, de que a Odebrecht “de 2001 até este ano, (…) realizou ou mandou fazer pagamentos que somam cerca de 439 milhões de dólares em 11 países fora do Brasil, nove deles latino-americanos (…) A partir desses pagamentos, a empreiteira obteve ganhos de mais de 1,4 bilhão de dólares.”[26]

Segundo dados coligidos por Virgínia Fontes, referentes ao ano de 2008, a Odebrecht é uma das mais internacionalizadas empresas brasileiras, com cerca de 70% de suas receitas originárias da atuação externa. Casos como esse seriam evidências da tese da autora de que o Brasil, embora de forma subordinada, integra o grupo de países “capital-imperialistas”.[27]Capital-imperialismo é o conceito empregado por Fontes para explicar o desenho atual da economia capitalista em sua escala global. Resgatando sua rica definição, que envolve também o reconhecimento do “predomínio atual do capital-monetário, ou da forma mais concentrada do capital” e a avaliação do perfil “censitário-autocrático” dos regimes políticos democráticos na atualidade:

“Falar, pois, de capital-imperialismo, é falar da expansão de uma forma de capitalismo, já impregnada de imperialismo, mas nascida sob o fantasma atômico e a Guerra Fria. Ela exacerbou a concentração concorrente de capitais, mas tendencialmente consorciando-os. Derivada do imperialismo, no capital-imperialismo a dominação interna do capital necessita e se complementa por sua expansão externa, não apenas de forma mercantil, ou através de exportações de bens ou de capitais, mas também impulsionando expropriações de populações inteiras das suas condições de produção (terra), de direitos e de suas próprias condições de existência ambiental e biológica. Por impor aceleradamente relações sociais fundamentais para a expansão do capital, favorece contraditoriamente o surgimento de burguesias e de novos Estados, ao mesmo tempo que reduz a diversidade de sua organização interna e os enclausura em múltiplas teias hierárquicas e desiguais. À extensão do espaço de movimentação do capital corresponde uma tentativa de bloquear essa historicidade expandida, pelo encapsulamento nacional das massas trabalhadoras, lança praticamente toda a humanidade na socialização do processo produtivo e/ou de circulação de mercadorias, somando às desigualdades precedentes novas modalidades.”[28]

A análise de Fontes, muito mais ampla do que o que aqui se capturou, ancora-se em discussões aprofundadas da obra de Marx sobre a acumulação capitalista, assim como das teorias do imperialismo, especialmente de Lenin. Mantém, além disso, um diálogo crítico com a tese do “subimperialismo” de Marini.

De qualquer forma, as teses que apontam para uma atuação subimperialista, ou capital-imperialista subalterna da acumulação capitalista a partir do Brasil estão longe de serem consensuais. Ancorados em uma análise da ampliação da presença do capital estrangeiro a partir das privatizações e da reconversão da pauta de exportações brasileira, cada vez mais centradas em produtos primários, desde pelo menos os anos 1990, autores como Plínio de Arruda Sampaio Jr. preferem entender que os efeitos da dependência em relação ao imperialismo na configuração atual da economia brasileira seriam melhor explicados em termos de uma “desindustrialização e especialização regressiva das forças produtivas”. Uma “reversão neocolonial” é por ele diagnosticada, a partir dos “nexos entre burguesia dos negócios, especulação mercantil e financeira como base da acumulação capitalista, dependência estrutural da exportação de commodities e revitalização do latifúndio e do extrativismo — estruturas típicas da economia colonial.”[29]

Alguns dos pressupostos dessa análise parecem indiscutíveis. De fato, as exportações brasileiras nos últimos anos apresentaram uma forte tendência à concentração nas chamadas commodities. Segundo um estudo do IPEA, “Entre 2007 e 2010, a participação das commoditiesprimárias na pauta de exportações brasileiras saltou dez pontos percentuais, de 41% para 51%, depois de ter estacionado no patamar dos 40% nos anos 1990.”[30] Há que se observar, porém, que, mesmo que a maior parte dessas mercadorias – soja, petróleo bruto e minério de ferro, por exemplo – representem matérias primas para um processo industrial que a elas agregará mais valor em outros espaços nacionais, sua produção interna envolve hoje um patamar muito mais elevado de valor agregado do que aquele representado pela cafeicultura que dominou as exportações brasileiras durante quase todo o século XIX e na primeira metade do século XX.

É também inegável que o setor industrial tem recuado na composição da produção nacional. No entanto, não houve avanço significativo da participação relativa do setor primário, tendo ocorrido um crescimento, esse sim expressivo, do setor terciário. Nos anos 1970, a agropecuária respondia por cerca de 10 a 12% do PIB brasileiro, enquanto a indústria representava cerca de 40% e os serviços os outros 48 a 50%. Um recuo da participação do setor primário se inicia no fim dos anos 1980 e a indústria começa a perder espaço já nos anos 1990. Ao longo daquela década, a participação do setor primário recua do patamar de 8 para o de 5,5% do PIB, enquanto a indústria declina sua participação dos quase 40 da década anterior para cerca de 27% e os serviços saltam dos 60 para os 67%. Tais patamares, atingidos nos anos 1990, se mantém quase inalterados nos anos 2000.[31] É necessário, no entanto, ter em conta que – não necessariamente pelas mesmas razões – o recuo da participação do setor industrial na composição do PIB é uma tendência também nas principais potências capitalistas, à excessão da China. Nos EUA, os dados mais recentes indicam que a participação da agricultura é de 1,1%, a da indústria 19,4% e os serviços respondem por 79,5% do PIB.[32]

Quanto à maior participação do capital estrangeiro na economia interna, não há qualquer dúvida. Segundo o censo do Banco Central, em 2014 o Investimento Direto no País (IDP) de capital estrangeiro somava US$531,4 bilhões, equivalentes a 25,6% do PIB. Em 1995 esses valores eram respectivamente de US$41,7 bilhões e 6,1%.[33] Tomando como exemplo o chamado “setor financeiro”, central para a configuração atual das economias capitalistas, a expansão da presença do capital estrangeiro nos anos 1990 foi muito expressiva. Segundo pesquisa do IPEA, “entre 1994 e 2001, o número de bancos estrangeiros em atividade no Brasil saltou de 38 para 72.”[34]

Um elemento agravante da dependência foi destacado por Roberto Leher em vários de seus estudos: trata-se da reduzida dimensão da inovação tecnológica gerada pelo capitalismo brasileiro, mensurável, por exemplo, pelo número e proporção de patentes registradas. Um processo agravado pelas políticas adotadas desde os anos 1990, pois “com a privatização das estatais, espaços de aprendizado foram desfeitos com o fechamento dos departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento das empresas públicas, situação que alcançou diversas áreas com a exceção da Petrobrás.” Esse é um dos elementos a explicar porque “entre os BRICS, o Brasil é o único em que o setor privado contribui com menos de 50% do investimento em P&D (na China, 74%).” Dados da Unesco, citados por Leher, revelam o Brasil ocupa apenas a “58ª colocação entre os países mais inovadores do mundo, recuando 7% entre 2002 e 2007”.[35] As patentes, elemento fundamental para entendermos o fluxo de capitais em um mercado mundial marcado por trocas desiguais, são de tal forma concentradas que os dados da OCDE para 2011 apontam que das 50.952 patentes registradas naquele ano 43.207 partiram de cidadãos residentes e empresas sediadas nos Estados Unidos, União Européia e Japão. Enquanto o Japão, país com maior número de patentes registradas naquele ano, somou 17.077 registros, o Brasil apresentou 87.[36]

Por outro lado, tais indicadores não necessariamente levam à conclusão de que vivemos uma situação de “regressão colonial”. Lidos em combinação com aqueles elementos apresentados por Fontes e outros estudos, podemos entender que o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, ou a reprodução ampliada do capital à escala global, representam hoje de forma cada vez mais acentuada aquela “expressão perversa” de “um sistema de relações muito mais complexo”, para usar novamente a citação de Marini.

A análise de Sampaio Jr., porém, possui outra dimensão extremamente relevante. Seu argumento é crítico das teses e políticas ditas “neodesenvolvimentistas”, que ganharam corpo como justificativa de apoio de certos setores políticos e acadêmicos ligados aos governos petistas ou simpáticos a sua atuação, para determinadas políticas do Estado brasileiro no período recente. Para os “neodesenvolvimentistas”, as renúncias fiscais em apoio ao setor industrial de bens duráveis, o suporte do BNDES para a maior internacionalização de algumas grandes empresas brasileiras, assim como a indução estatal ao investimento através de “grandes obras”, ao estilo do PAC, representariam o patamar máximo possível de indução ao desenvolvimento econômico. Assim, estariam dados, ao mesmo tempo, o limite último da defesa da “economia nacional” e a possibilidade de construção de políticas sociais compensatórias e focalizadas, além de uma pequena mas contínua ampliação do salário mínimo, que fortalecessem o mercado interno. Segundo Sampaio Jr., o neodesenvolvimentismo

“só pode fantasiar sobre a possibilidade de um desenvolvimento capitalista nacional porque ignora os encadeamentos necessários entre concentração e centralização dos capitais, dominância absoluta do capital financeiro sobre o processo de acumulação, lógica de império que preside a ação das potências imperialistas (Estados Unidos à frente), total subordinação da ordem econômica mundial aos imperativos do capital financeiro, incontrolabilidade do capital, crise terminal do keynesianismo e tendência à reversão neocolonial nos países que fazem parte da periferia da economia mundial.”[37]

Menos que conclusões, questões

No que tange à configuração atual do capitalismo no Brasil, face ao exposto, pode-se dizer que ela é marcada por um elevado grau de concentração e centralização de capitais, em que os setores que produzem valor e os setores que portam juros – vulgarmente chamados de capital produtivo e capital “financeiro” (os bancos) -, assim como as faces nacional, internacional e associada das empresas capitalistas, estão de tal forma entrelaçados e interpenetrados que, ainda que se possa falar de interesses específicos de frações (a indústria, o agronegócio, os bancos…), dificilmente encontraremos, hoje, empresas e burgueses que representem tal perfil de forma “pura”.

Percebemos também que o capitalismo brasileiro é cada vez mais internacionalizado – na dimensão do maior investimento estrangeiro e controle imperialista sobre o país, mas também da necessidade dos capitais aqui instalados de buscarem o mercado externo, como “consequência agravante” ou “causa contrariante” da tendência à queda na taxa de lucros. Assumir que conceitos como subimperialismo ou “capital imperialismo subalterno” possam expressar processos típicos da acumulação capitalista em países dependentes, portanto, não significa negar tal dependência ou projetar que sua superação possa ser alcançada nos marcos de um suposto desenvolvimento nacional autônomo.

Mesmo sem espaço para esgotar neste momento a questão, cabe, por fim, colocar um problema para a análise da conjuntura. Quando, a partir de 2014, teve início a articulação entre setores dos poderes executivo, legislativo e judiciário que deu início à ofensiva alegadamente “de combate à corrupção”, para além da atribuição de responsabilidade quase exclusiva aos representantes do PT, por parte de investigadores, juízes e mídia, é forçoso reconhecer que seus alvos preferenciais em relação ao capital (Petrobrás e empreiteiras) são justamente os setores avançados da expansão subimperialista em moldes renovados da década anterior. É cedo para afirmar com precisão qual o peso da ofensiva do imperialismo estadunidense na América Latina sobre tais processos recentes, mas já há elementos suficientes para afirmar que ela existe.

De qualquer forma, no imediato, se as contradições do subimperialismo, em sua conformação a partir do capitalismo dependente brasileiro, se tornam mais evidentes, ganha maior centralidade uma das avaliações apresentadas por Sampaio Jr., em sua crítica às ilusões induzidas pelos apologistas de um suposto “neodesenvolvimentismo” lulista:

“Nesse contexto, antes de um processo sustentável de desenvolvimento, a sociedade brasileira deve esperar novos ataques aos direitos dos trabalhadores e às políticas públicas — única variável de ajuste que resta às burguesias locais para fazer face ao acirramento da concorrência internacional.”[38]

Mas, que burguesias locais seriam essas? O caráter da classe dominante aqui instalada é o tema da próxima Nota.

Notas

[1]
                [1] Tais indicadores são sempre muito influenciados pelas variações cambiais, oscilando muito de um ano para outro e não podem ser tomados, por isso mesmo, como algo além de uma medida aproximativa.

[2]
                [2] Sobre o salto industrializante dos anos 1930, ver Sonia Mendonça, Estado e industrialização no Brasil: opções de desenvolvimento, Rio de Janeiro, Graal, 1985, pp. 33 e ss. Séries históricas com os dados do PIB por setor econômico (entre outros) desde os anos 1970 podem ser encontradas nas cartas de conjuntura do IPEA. Para os dados até 2015 ver http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6620, última consulta janeiro de 2017.

[3]
                        [3] Tendo por base o índice de Gini, o Brasil ocupa a posição de número 130, entre 144 países. http://www.indexmundi.com/es/datos/indicadores/SI.POV.GINI/rankings, última consulta janeiro de 2017. Se o indicador utilizado for o IDH, estamos em 75º lugar, entre 188 países http://hdr.undp.org/sites/default/files/ranking.pdf, última consulta janeiro de 2017.

[4]
                        [4] De acordo com o banco de dados construído a partir dos registros de viagem dos navios negreiros em um projeto de pesquisa internacional, cujos resultados estão disponíveis em http://www.slavevoyages.org/assessment/estimates, consultado em janeiro de 2017.

[5]
                [5] O debate entre os que como Fernando Novais, resgataram as teses de Caio Prado Júnior sobre o sentido da colonização, para destacar o caráter subordinado da economia colonial no Antigo Sistema Colonial e aqueles que como Ciro F. S. Cardoso e Jacob Gorender defenderam a centralidade das relações sociais de produção para a o entendimento da sociedade que aqui se constituiu, valorizando portanto a especificidade do modo de produção escravista-colonial, constituiu a principal discussão da historiografia brasileira em fins dos anos 1970 e início dos anos 1980. As principais obras desse debate seriam C. Prado Jr, A formação do Brasil contemporâneo, São Paulo, Cia. das Letras, 2011 (1a. ed. 1942); F. Novais, Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, São Paulo, Hucitec, 1979; Ciro F. S. Cardoso, “O modo de produção escravista colonial na América”, in Théo Santiago (org.), América colonial, Rio de Janeiro, Pallas, 1975; e J. Gorender, O escravismo colonial, São Paulo, Perseu Abramo, 2011 (1a. ed. 1978).

[6]
                [6] Diferentes autores vinculados ao PCB expressaram em suas análises essa tese dos resquícios feudais. Ela aparecerá por exemplo em  Alberto Passos Guimarães, Quatro séculos de latifúndio, Rio de Janeiro, Fulgor, 1963;  e de forma mais complexa, pois dando mais peso à centralidade das relações de trabalho baseadas na escravidão, Nelson Werneck Sodré, Formação histórica do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1962. Lembremos que Caio Prado Jr. também era filiado ao PCB e desde os anos 1950 combatia tais interpretações, nas discussões internas ao partido e no debate público, como se pode ver em C. Prado Jr., A questão agrária no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1964.

[7]
                        [7] Declaração sobre a política do PCB, 1958. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/tematica/1958/03/pcb.htm, última consulta em janeiro de 2017.

[8]
                [8] Ver por exemplo os documentos das organizações brasileiras que seguiram o caminho da “Oposição de Esquerda” no debate soviético de fins dos anos 1920 e mais tarde participaram do processo de criação da IV Internacional, reunidos em Fulvio Abramo e Dainis Karepovs (orgs.), Na contracorrente da história: documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940, 2 ed., São Paulo, Sundermann, 2015.

[9]
                        [9] “Programa Socialista para o Brasil”. Este e outros documentos da organização, assim como obras de referência teórica importantes para seus militantes podem ser encontrados no site do Centro de Estudos Victor Meyer, http://centrovictormeyer.org.br. Último acesso em janeiro de 2017.

[10]
                [10] Karl Marx, O Capitalcrítica da economia política. Livro III, volume I. 2. ed. São Paulo, Nova Cultural, 1985-1986, p. 164. A obra, em suas muitas edições e em vários idiomas, pode ser encontrada em diferentes sítios na internet. Uma explicação sintética sobre a questão, porém mais desenvolvida do que a que aqui apresento pode ser encontrada em Gabriel Casoni, “A queda tendencial da taxa de lucro e as crises do capitalismo”, 27/12/2016 in http://blog.esquerdaonline.com/?p=7789, consultado em janeiro de 2017.

[11]
                        [11] K. Marx, O Capital, Livro III, p. 181.

[12]
                        [12]K. Marx, O Capital, Livro IIIp. 181.

[13]
                        [13] K. Marx, O Capital, Livro IIIp. 193.

[14]
                [14] K. Marx, O Capital, Livro III, p.188.

[15]
                        [15] Um excelente resumo do debate sobre o imperialismo pode ser encontrado em Hugo F. Corrêa, “O Status da Categoria Imperialismo na Teoria Marxista: notas preliminares a partir do debate clássico” (Trabalho apresentado ao encontro Marx e o Marxismo 2011), disponível nos Anais Eletrônicoshttp://www.niepmarx.com.br/MM2015/anais2011.htm, consultado em janeiro de 2017 . Aqui não podemos reproduzir a relevante análise crítica desenvolvida pelo autor ao uso de categorias como monopólio e capitalismo monopolista, por aquelas obras clássicas, mas vale o registro sobre sua proposição de que em tal viés de análise acabava por ser privilegiada uma oposição entre concorrência e monopólio, que não encontra correspondência na discussão de Marx sobre a concentração e centralização de capitais.

[16]
                        [16] V. I. Lênin, O Imperialismo: etapa superior do capitalismo, Campinas, FEUnicamp, 2011, p. 218. https://www.editoranavegando.com/imperialismo-fase-superior, última consulta janeiro 2017.

[17]
                        [17] Lênin, O Imperialismo, p.266.

[18]
      [18]Leon Trotsky, História da revolução russa, São Paulo, Sundermann, 2007, Tomo I, p. 21. Outra edição pode ser encontrada online em https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/, última consulta janeiro 2017.

[19]
                [19] Florestan Fernandes, A revolução Burguesa no Brasil, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p.318.

[20]
                [20] Fica aqui o registro de que a teoria marxista da dependência de Marini é distinta daqueles estudos que também foram identificados como teoria da dependência, desenvolvidos por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Uma excelente síntese dos principais pressupostos da proposta de Marini pode ser encontrado em Marcelo D. Carcanholo, O atual resgate crítico da teoria marxista da dependência, Trabalho,  Educação eSaúde, v. 11 n. 1, 2013, p. 191-205, http://www.scielo.br/pdf/tes/v11n1/a11v11n1.pdf, última consulta janeiro de 2017. O acesso a uma parte significativa da produção de Marini pode se dar pelo sítio mexicano http://www.marini-escritos.unam.mx, último acesso em janeiro de 2017.

[21]
                        [21]  Ruy Mauro Marini, América Latina: Dependência e integração, São Paulo, Brasil Urgente, 1992, pp. 137-8. A análise de Marini sobre o subimperialismo foi objeto de diversos trabalhos de Mathias Lucce, como por exemplo, O subimperialismo, etapa superior do capitalismo dependente, Tensões mundiais, v. 10, n. 18, 19, 2014, p. 43-65. Pode ser acessado em http://www.tensoesmundiais.net/index.php/tm/article/viewFile/342/425, última consulta janeiro de 2017.

[22]
                        [22] Ver a esse respeito o trabalho de Pedro Campos, Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, Niterói, Eduff, 2014. A versão original de sua tese de doutorado, que deu origem ao livro, pode ser encontrada em http://www.historia.uff.br/stricto/td/1370.pdf, última consulta em janeiro de 2017.

[23]
                        [23] Segundo o sítio da própria empresa, http://www.petrobras.com/pt/quem-somos/, última consulta janeiro 2017.

[24]
                        [24] Ver a respeito a reportagem “Equador indenizará a Petrobrás com U$ 217 milhões por final de contrato”, do portal G1, 30/04/2012,  http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2012/04/equador-indenizara-petrobrasx-com-us-217-milhoes-por-final-de-contrato.html, última consulta em janeiro de 2017.

[25]
                        [25] Ver a esse respeito a matéria “Petrobrás vende US$ 1,3 bi em ativos na América Latina”, publicada pelo Estado de São Paulohttp://economia.estadao.com.br/noticias/geral,petrobras-vende-us-1-3-bi-em-ativos-na-america-latina,10000048947?success=true,24/01/2017, último acesso janeiro 2017.

[26]
                        [26] Joan Faus, “A propina da Odebrecht fora do Brasil: Venezuela, Argentina, Peru e Angola”, El pais – Brasil, 22/12/2016, http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/21/politica/1482360664_921109.html, último acesso janeiro de 2017.

[27]
                        [27] Virgínia Fontes, O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história, 2. ed, Rio de Janeiro, EPSJV/Editora UFRJ, 2010, p. 345 e 303. O livro pode ser lido a partir de http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/brasil_capital_imperialismo.pdf, último acesso janeiro 2017.

[28]
                        [28] Virgínia Fontes, O Brasil e o capital imperialismo, p. 149.

[29]
                [29] Plínio de Arruda Sampaio Jr., Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo: tragédia e farsa, Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 112, 2012, 672-688, p. 682, http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n112/04.pdf, última consulta, janeiro 2017.

[30]
                        [30] “Exportações: o avanço das commodities”,  http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2513:catid=28&Itemid=23, última consulta janeiro 2017

[31]
                        [31] Dados conforme a série histórica do PIB pela ótica da oferta organizada pelo IPEA, http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6620, última consulta janeiro de 2017.

[32]
                        [32] Uma excelente fonte de informações online sobre todas as regiões do mundo está disponível no sítio da CIA, de onde coletamos estes dados. Ver https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/fields/2012.html#us, última consulta janeiro 2017.

[33]
                        [33]Banco Central do Brasil, Censo de capitais estrangeiros no país- resultados para 2014, http://www.bcb.gov.br/Rex/CensoCE/port/Censo%202015%20ano-base%202014%20-%20resultados.pdf, última consulta janeiro de 2017.

[34]
                        [34] Maria Cristina Penido de Freitas, A internacionalização do sistema bancário brasileiro, Braília, IPEA, 2011, p. 13. http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1337/1/TD_1566.pdf, última consulta, janeiro 2017.

[35]
                        [35] Roberto Leher, A universidade reformada: atualidade para pensar tendências da educação superior 25 anos após sua publicação, Revista Contemporânea de Educação, vol. 8, n. 16, 2013, 316-340, p. 333, https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/viewFile/1702/1551, última consulta janeiro 2017.

[36] 
              [36] Conforme o banco de dados da OCDE, que pode ser acessado em http://stats.oecd.org/Index.aspx?DatasetCode=PATS_IPC#, última consulta janeiro 2017.

[37]
                        [37] Plínio Sampaio Jr., Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo, p. 683. Uma outra rica análise crítica do “neodesenvolvimentismo”, centrada no questionamento aos pressupostos teóricos dessas teses, à luz da elaboração marxiana, pode ser encontrada em Bianca Imbiriba Bonente e Hugo Figueira Corrêa, Desenvolvimento sem “ismos”: uma crítica ao novo desenvolvimentismo a partir dos Grundrisse de Marx, Outubro, 23, 2015. http://outubrorevista.com.br/desenvolvimento-sem-ismos-uma-critica-ao-novo-desenvolvimentismo-a-partir-dos-grundrisse-de-marx/, última consulta janeiro 2017.

[38]
                [38] Plínio Sampaio Jr., Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo, p. 684.

Foto: Interior de uma fábrica no Brasil, 1880 | Wikipedia

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