Este não é um texto como os demais desta coluna. Fugindo ao habitual, escrevo aqui em primeira pessoa e em tom mais pessoal do que analítico, para explicar minha filiação ao PSOL e minha opção por ingressar na RESISTÊNCIA. Trata-se de uma decisão política que venho amadurecendo há algum tempo e que se assenta em uma análise da conjuntura recente, na avaliação dos programas e métodos das diferentes organizações de esquerda e, naturalmente, em minha trajetória política pessoal. Começo recuperando alguns elementos desta última.
De volta ao PSOL
Já fui militante do PSOL. Participei de seu Congresso de fundação, em Brasília em 2005, mas me desliguei do partido em 2006, no contexto da frustrante campanha presidencial de Heloísa Helena (marcada pelo personalismo e por declarações anti-aborto). Não posso negar que minha experiência então foi bastante frustrante.
Antes disto, fui militante do PT em toda a década de 1990. Rompi com o PT e me desfiliei em 2001, quando ficou claro o sentido programático da nova candidatura de Lula. No primeiro semestre de 2003 (o primeiro do governo Lula), participei de diversas atividades e reuniões promovidas por pequenos grupos que amadureciam a necessidade de construção de um novo partido. Em junho daquele ano, participei em Porto Alegre de um encontro de militantes dispostos a esta construção (semelhante a encontros ocorridos em outras cidades do país). O documento produzido naquele encontro (Carta de Porto Alegre) expressava a disposição de militantes que pretendiam construir um novo partido classista e que superasse radicalmente os vícios da experiência petista, bem como os desvios burocráticos de outras organizações de esquerda. A intenção era trabalhar para a construção de um partido de massas e radicalmente democrático, tendo como elemento central a proposição de que o partido fosse construído essencialmente através de seus núcleos de base e que todos órgãos diretivos fossem constituídos a partir deles.
Naquele momento, existia já a ameaça de expulsão contra os parlamentares petistas que se recusavam a votar favoravelmente à contrarreforma da Previdência imposta por Lula e Meirelles, mas a opção daqueles parlamentares por saírem do PT não estava dada ou ainda não tinha se tornado pública, de forma que o movimento por um novo partido se iniciou a partir de militantes de base e sem lideranças nacionalmente conhecidas. A expulsão de Heloísa Helena, Babá, Luciana Genro e João Fontes em dezembro daquele ano modificaria a dinâmica deste processo. Por um lado, faria com que seu ritmo fosse muito acelerado, dando a este movimento uma visibilidade bem maior. Por outro, as organizações políticas que Babá e Luciana Genro integravam, bem como o grupo vinculado a Heloísa Helena, pretendiam a construção de uma estrutura política mais frouxa e, portanto se opuseram à proposta de um partido no qual todo militante devesse estar vinculado a um núcleo de base, bem como à proposta de que as direções fossem constituídas exclusivamente a partir de delegados tirados nos núcleos de base. Na versão que posteriormente foi oficializada sobre a construção do partido, desapareceram todas as iniciativas anteriores à expulsão dos parlamentares: “Capitaneada por diversos grupos políticos, militantes socialistas e intelectuais de esquerda, a nossa construção teve início em dezembro de 2003, quando os então deputados João Fontes e João Batista Babá, a deputada Luciana Genro e a senadora Heloísa Helena foram expulsos do Partido dos Trabalhadores (PT) por votarem contra a orientação da legenda na reforma da previdência, realizada no primeiro ano do governo Lula, que retirava direitos dos servidores públicos (grifo meu)”. (1)
Durante o processo de construção partidária, desenvolveu-se um vivo debate, mas o peso das correntes políticas e dos mandatos parlamentares determinou que tenha se tornado majoritária uma concepção organizativa tida como “mais aberta”. O Congresso de Fundação, em junho de 2004, consolidou o modelo defendido pelos parlamentares e suas correntes, permitindo que delegados para os congressos partidários fossem eleitos em instâncias à margem dos núcleos de base, como plenárias municipais. De parte dos que nos opúnhamos a este modelo, o temor era que com esta dinâmica organizativa o partido se subordinasse completamente à lógica parlamentar, com risco de reproduzir a experiência petista.
Nos anos de 2005 e 2006, estando então em Porto Alegre, militei no Núcleo Primeiro de Maio, um núcleo que produziu sistemática crítica às opções predominantes no partido em âmbito nacional e regional, e combateu movimentos que fragilizavam a perspectiva classista e socialista. Um dos mais fortes embates se deu como nossa oposição e denúncia contra o ingresso do senador acreano Geraldo Mesquita, vindo diretamente do PMDB e inteiramente estranho à tradição socialista. (2) Aquele embate antecipava diversos outros que ocorreriam nos anos seguintes e que levaram à passagem de alguns trânsfugas políticos pelo PSOL, até que eles próprios decidissem buscar outros caminhos.
A experiência no núcleo Primeiro de Maio foi muito significativa, mas militar no PSOL no Rio Grande do Sul naquele momento apresentava-se como especialmente difícil em face do claro predomínio de uma tendência política que se opunha diametralmente à crítica que expressávamos. Em 2006, com o ingresso da APS e outros setores políticos no PSOL, que consequentemente levou à afirmação de um perfil mais moderado, participei junto a alguns companheiros do núcleo Primeiro de Maio de algumas tentativas de construção de uma nova organização interna que permitisse intervir no interior do partido com certa unidade. Tal iniciativa acabou não se consolidando, e o profundo desagrado com a campanha presidencial de Heloísa Helena foi a gota d’água para que, junto com outros companheiros, decidisse pelo meu desligamento do partido.
A campanha presidencial de 2010 foi um alento, com o saudoso camarada Plínio de Arruda Sampaio projetando uma consistente crítica à experiência petista a partir de uma posição de esquerda, em um momento em que os governos petistas ainda contavam com expressivo apoio popular. Em 2014, sem condições de apoiar a candidatura do PSOL, fiz campanha para Mauro Iasi (PCB), reconhecendo nela uma campanha classista, a despeito de suas limitações.
Como vejo o PSOL hoje? Certamente muitas das críticas que fazíamos há 15 anos permanecem válidas. Não creio, certamente, que o PSOL hoje tenha se modificado no sentido de uma organização mais semelhante ao que esperávamos e defendíamos em 2003. Pode parecer então estranha a opção em retornar à militância partidária. No entanto, esta opção se explica por alguns fatores. O primeiro deles é a evidente mudança da conjuntura política e os novos desafios que esta coloca, reforçando a importância e necessidade da organização partidária para a construção da resistência. É certo que à época da construção do PSOL, a partir de uma avaliação crítica que fazíamos do social-liberalismo e das opções centrais dos governos petistas, já podíamos antever que estes fomentavam condições para uma ascensão conservadora. Ainda assim, dificilmente alguém poderá sustentar que tinha clareza da dimensão e intensidade do avanço da direita e da força com que se colocariam riscos às liberdades democráticas. Um segundo fator é o reconhecimento do papel que o PSOL assumiu progressivamente como principal organizador da resistência, seja pelo seu crescimento orgânico, seja pelos efeitos deixados pelo vácuo produzido pela opção petista por uma pretensa resistência sem mobilização popular. Não se trata aqui de sustentar que o PSOL não cometeu equívocos em sua relação com movimentos sociais, mas ainda que os tenha cometido, sua importância é inegável e não se pode negar a relevância do papel articulador de uma organização estritamente política para a articulação das lutas empreendidas pelos diferentes movimentos. E, finalmente, o terceiro e decisivo fator, é a possibilidade de militar no interior de uma organização política classista, socialista e revolucionária com a qual eu tenha acordo nos princípios políticos e organizativos gerais.
O ingresso na Resistência
Diversos eventos e processos desenvolvidos nos últimos anos demarcaram distintos campos no interior da esquerda socialista brasileira, em decorrência das leituras e posições diversas que tomaram frente a estes eventos e processos. As Jornadas de Junho de 2013, o movimento contra a Copa de 2014, o acirramento repressivo desencadeado pelo governo Rousseff, o desenvolvimento da Operação Lava a Jato, as manifestações reacionárias de 2015, o Golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro foram lidos de distintas formas pela esquerda. No meu entendimento, não foram muitos os conseguiram produzir uma leitura correta deste processo em seu conjunto, superando dicotomias primárias como a escolha entre, de um lado, apoiar a Lava Jato e, de outro, apoiar os governos petistas. Dentre os que não se enredaram nesta dicotomia, destacam-se militantes que participaram da construção da Nova Organização Socialista, no início de 2016. Desde então, passei a acompanhar com especial interesse as análises produzidas por esta organização. Hoje sabe-se que outros tantos militantes tinham uma leitura semelhante estando no interior das fileiras do PSTU, o que os impedia de expressar publicamente sua avaliação por conta da disciplina partidária.
A maior parte da esquerda dividia-se entre dois equívocos a meu ver muito graves. De um lado, a recusa em reconhecer a existência de um avanço conservador, muitas vezes associada a ilusões com a Operação Lava a Jato. Esta posição ignorava as fartas evidências para afirmar o caráter progressivo do processo de afastamento de Dilma Rousseff (tido como signo de um progressivo rompimento das massas com o PT), e na sua forma mais extremada saudava abertamente a Lava a Jato e propagava a consigna Fora Todos. De outro lado, parte da esquerda, em nome da luta contra o Golpe, abdicava do necessário balanço crítico da experiência dos governos petistas e com isto tornava-se impotente para atuar no novo contexto, ou o fazia a reboque das direções petistas, que sistematicamente subordinaram todas mobilizações a seus cálculos eleitorais. Não é possível compreender de forma efetiva o avanço da direita sem avaliar criticamente os 13 anos de governos petistas e a conexão direta entre as opções do social-liberalismo e o crescimento das condições para a ascensão conservadora. Não é possível compreender a escalada do genocídio das populações negras e periféricas e a naturalidade com que tropas militares fuzilam um trabalhador negro com 80 tiros sem lembrar os 13 anos da vergonhosa ocupação brasileira no Haiti, cujos comandantes (a começar por Augusto Heleno) estão hoje em posição de destaque no governo Bolsonaro; sem lembrar do massacre de Citè Soleil e do sistemático “aprendizado” das formas de imposição do terror e contenção das populações periféricas de Porto Príncipe, sem lembrar da institucionalização da Doutrina da Garantia da Lei e Ordem no contexto da repressão ao “não vai ter Copa”.
A construção de uma organização simultaneamente crítica às experiências petistas e ao lavajatismo deu um passo importante há um ano, com a unificação ocorrida entre a NOS e o MAIS (Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista), constituindo-se a Resistência. Vejo nesta organização um importante instrumento para enfrentarmos os desafios atuais.
Uma organização que reconhece que enfrentamos um processo de ascensão conservadora e gigantescas ameaças tanto contra os direitos sociais quanto contra as liberdades democráticas; e que ao mesmo tempo entende que a efetiva Resistência tem que se dar em bases autônomas, classistas e anticapitalistas. Que não há resistência efetiva com base na idealização de um passado mítico e de uma opção política baseada na conciliação de classes que só pode se manter com algum êxito em uma fase expansiva do capitalismo como propõem os saudosistas dos governos petista, o que no atual contexto nacional, latino-americano e mundial, é uma ilusão com graves decorrências políticas.
Uma organização que não teve nenhuma dúvida em denunciar o caráter ilegal e arbitrário da prisão de Lula da Silva, mas que nem por isso abraça o projeto político lulista nem deixa de denunciar a igualmente ilegal e arbitrária prisão de Rafael Braga e tantos outros.
Uma organização que entendeu a importância da aliança com o MTST e a APIB e por isto defendeu a candidatura Boulos-Guajajara, na perspectiva de fortalecimento de uma aliança estratégica construída com a participação efetiva dos movimentos sociais dispostos a lutar e resistir.
Uma organização sobretudo que não se entende como “verdadeira vanguarda”, na formal usual em pequenas organizações sectária, mas ao contrário se vê como expressão e como parte de um processo mais amplo da reorganização da esquerda socialista, e que por isto não deixa de perceber que este é um processo em andamento e que tal reorganização depende muito mais da organização efetiva dos movimentos concretos de resistência do que de declarações autoproclamatórias ou da reafirmação abstrata de princípios genéricos.
É pela identificação com esta perspectiva que passo a me colocar na condição de militante da Resistência!
NOTAS
1 – http://psol50.org.br/partido/historia/
2 – O ingresso de Mesquita era apresentado pelas principais correntes como signo do fortalecimento partidário. Para frustração destes, Mesquita permaneceu poucos meses no partido, transferindo-se ao PSB, para posteriormente retornar ao PMDB.